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Jornalismo
Científico e a síndrome da erva daninha
Wilson da Costa Bueno*
Resumo
A
imprensa brasileira, apoiada numa perspectiva essencialmente econômica,
tem contribuido para difundir um falso conceito de sustentabilidade,
contaminado pelos interesses das grandes empresas multinacionais.
Por isso, considera o conhecimento local, a defesa da biodiversidade
e a resistência aos transgênicos como traços de uma cultura primitiva
que se encontra em oposição ao pensamento científico. Para reverter
esse processo e estabelecer uma postura crítica em relação à chamada
"mentalidade química", é essencial capacitar os jornalistas,
mostrando-lhes como esses interesses atuam fortemente na indústria
da comunicação. Este artigo identifica as formas de atuação das
empresas multinacionais que visam ao monopólio das sementes e
dos insumos agrícolas.
Palavras-chave:
Jornalismo Científico - Jornalismo Ambiental
Jornalismo e Agribusiness Jornalismo e Biodiversidade
Abstract
The
Brazilian Press, based on a economical perspective, has contributed
in spreading a false concept of sustentability, infected by big
multinational interests. It judges the local knowledge, the defense
of biodiversity and the resistence in transgenics as traces of
a primitive culture, in opposition of the scientific thought.
To revert this process and to establish a critical posture concerning
the "chemical mentality", it is essential to qualify
the journalists, pointing out to them how the big interests actually
work. This article identifies the ways of operation of multinational
companies that intend to reach the monopoly of seed and agricultural
outputs.
Palavras-chave:
Scientific Journalism - Environmental Journalism
Journalism and Agribusiness Journalism and Biodiversity.
A
análise do comportamento da imprensa brasileira diante das questões
ambientais emergentes (mudanças climáticas, transgênicos, agrotóxicos,
biodiversidade e biopirataria etc) só pode ser realizada, satisfatoriamente,
se pudermos dispor de dois cenários abrangentes: o perfil do jornalismo
brasileiro contemporâneo e as formas de atuação/intervenção de
segmentos industriais que impactam o meio ambiente.
Mudanças
drásticas têm ocorrido tanto no universo da mídia (e no jornalismo,
em particular) como no conjunto de atores que, apoiados estritamente
na racionalidade econômica, atentam contra a sustentabilidade,
degradando o solo, o ar e a água em nome do lucro e do progresso
técnico.
Essas
mudanças têm contribuído para que a comunicação e o debate dos
temas ambientais sejam penalizados , de tal modo que, de maneira
contundente, podemos admitir que, à exceção de alguns nichos na
grande imprensa e das chamadas mídias ambientais, os meios de
comunicação têm feito o jogo dos grandes interesses. A falta de
uma postura crítica e a adesão, sem restrições, às benesses prometidas
pelo modelo agroexportador brasileiro comprometem a qualidade
da informação jornalística e, consequentemente, a democratização
do conhecimento ambiental.
A
imprensa fragilizada
A
indústria da comunicação, no Brasil, e particularmente os grandes
jornais, vêm atravessando, nos últimos anos, uma crise sem precedentes.
Menos pelas condições impostas pela realidade brasileira e mais
pela adoção de processos de gestão obsoletos, as empresas jornalísticas
têm acumulado dívidas crescentes, tornando-se frágeis e vulneráveis.
Evidentemente,
a cena brasileira, sobretudo nos anos recentes, não tem dado trégua
aos empresários, desestimulados ao investimento pelos juros exorbitantes,
pela carga tributária excessiva e pela instabilidade permanente
da economia nacional, refém dos humores do mercado (especialmente
o financeiro) externo. Esta componente estrutural está presente,
portanto, na crise da indústria da comunicação, mas não a justifica
plenamente porque outros setores, submetidos ao mesmo constrangimento,
têm , inclusive, experimentado picos de crescimento.
Concebidos
ou administrados como empresas familiares, os veículos jornalísticos
têm tido dificuldade para implementar uma administração moderna,
profissionalizada, na verdadeira acepção do termo. O esforço das
famílias no sentido de manter a todo custo o controle dos veículos
impede que outros parceiros deles se aproximem , para injetar,
ao mesmo tempo, recursos que lhes garantam o crescimento e novas
idéias que permitam superar o atual impasse.
Este,
certamente, é um dos motivos que explicam o fato de que, mesmo
com a abertura para a participação do capital estrangeiro na indústria
da comunicação brasileira, os investidores externos continuem
retraídos, como se descrentes da potencialidade do negócio da
informação no Brasil.
O
desaparecimento de muitos títulos de jornais e revistas nos últimos
anos, o processo acelerado de concentração e de fusões de empresas
jornalísticas e a apropriação das mídias pelas igrejas apontam
para um futuro nada promissor. Muitos veículos, individualmente
ou em conjunto, estão batendo às portas do BNDES, buscando irrigar
suas receitas à custa do Governo, num processo de capitulação
que pode ser fatal para a independência de suas linhas editoriais.
É
preciso agregar a este fato um outro não menos preocupante: os
veículos jornalísticos, pressionados pela "quebra do caixa",
têm engendrado estratégias comerciais equivocadas, oferecendo
aos anunciantes formas "criativas" de intervenção no
produto editorial, confundindo (talvez fosse melhor dizer iludindo)
a audiência (leitores de jornais e revistas, radiouvintes, telespectadores
e internautas). Os publieditoriais (anúncios disfarçados de matérias)
e os projetos de mercado/marketing (de que resultam páginas, cadernos
ou encartes que fazem a apologia de organizações empresariais
ou de governos) infestam a mídia brasileira, ao mesmo tempo em
que o colunismo explode, o que significa perda de espaço , autonomia
e a abertura do flanco para a atuação de assessorias de imprensa/comunicação
e de agências de publicidade das grandes corporações. Nunca o
assédio dos anunciantes à imprensa foi tão descarado e, certamente,
nunca encontrou terreno tão propício para fazer valer os seus
interesses.
O
que talvez, há pouco tempo, fosse regra para os veículos de menor
porte, sem recursos e sem ética, passa a ser percebido, com insistência,
nos grandes jornais e revistas, ou seja uma aproximação perigosa
entre informação e marketing, entre redação e setor comercial
e a perda, pelos veículos, da capacidade de gerar as suas próprias
pautas. Muitos jornalistas, na TV ( vide o escândalo recente do
merchandising no jornalismo esportivo) ou nas colunas de jornais
e revistas (e, agora, as vilãs não são apenas as colunas sociais,
tradicionalmente vistas como espaço para tráfico de influência
e de corte aos poderosos), passam a assumir sua condição de empresários
(donos de agências de comunicação) , estabelecendo uma condição
nebulosa para sua atuação na imprensa de massa. A informação na
mídia brasileira, mais do em qualquer outra época, está à mercê
de interesses excusos.
Há
quem afirme, como o prof. Manuel Chaparro, um dos mais lúcidos
críticos da imprensa nacional, que os nossos jornais se tornaram
reféns das fontes empresariais (ou do governo), perdendo, dessa
forma, a capacidade de exercer a sua postura crítica. Provavelmente,
essa capitulação aos interesses empresariais explique a drástica
redução das redações (o enxugamento do mercado tem sido avassalador,
particularmente nos últimos 3 anos) e o rejuvenescimento das equipes,
quase sempre associado à deterioração dos salários pagos aos jornalistas.
A crise da imprensa tem empurrado excelentes profissionais para
as gerências/diretorias de comunicação das organizações empresariais
ou os têm estimulado a abrir o seu próprio negócio, reforçando
esse desequilíbrio entre o que se pauta autonômamente nas redações
e o que se importa, se copia do mercado. A imprensa está, cada
vez mais, envolvida no universo dos releases, das coletivas, das
abordagens inteligentes das assessorias, do media training e das
famigeradas "viagens a convite de". A independência
editorial vem sendo vendida, a cada dia, nos balcões de anúncios,
nos projetos de marketing, nas festas de lançamentos de novos
produtos, ainda que se possa identificar , aqui e acolá, focos
de resistência, normalmente comandados por velhos jornalistas
que ainda não se acostumaram com a idéia de que "tudo é marketing".
O
importante é que o foco das empresas jornalísticas (as exceções
apenas confirmam a regra) tem deixado, gradativamente, de ser
a qualificação da informação e a capacitação dos profissionais
de imprensa para se localizar no aumento de receita a qualquer
custo. Para isso, vale concentrar o esforço na venda de livros
, CDs, fascículos (quase sempre de qualidade discutível), ao invés
de priorizar a melhoria das condições de trabalho nas redações.
A "alma" do jornalismo está sendo posta à venda, o que
representa uma ameaça real à consolidação da democracia em nosso
País.
Este
cenário compromete a cobertura jornalística de maneira geral e,
como poderemos ver, a própria cobertura da temática ambiental
(como a de saúde , de agribusines e a de ciência e tecnologia,
para só citar 3 áreas muito próximas), especialmente porque, neste
caso, os interesses são poderosos e a capacitação dos jornalistas
nem sempre adequada para fazer frente ao enorme desafio da comunicação
especializada.
Conhecimento
e poder
Muitas
empresas de tecnologia têm evidenciado um notável crescimento
neste início de século, apoiadas em processos sofisticados de
planejamento estratégico, que inclui a aniquilação dos adversários,
a parceria com concorrentes e a constituição de cartéis para dominar
o mercado. Experimentam, também, um processo acelerado de fusões
e aquisições e diversificam-se para abranger áreas aparentemente
distintas, como a biotecnologia, a produção de medicamentos, a
produção de sementes, de agrotóxicos etc.
Com
certeza, está em curso uma vigorosa concentração de capital e
de propriedade, de que tem resultado o domínio, por parte de poucas
empresas, de mercados bilionários. Podemos citar, ainda que rapidamente,
alguns dos setores mais sujeitos a esta concentração e tornar
evidente o fato de que eles estão umbilicalmente vinculados às
crises ambientais que assolam o planeta.
Basta
mencionar alguns estatísticas dispersas, citadas por Pat Roy Money,
para se chegar a uma conclusão assustadora:
"Há
20 anos, nenhuma das 7.000 empresas de sementes de maior peso
no mundo tinha uma porção identificável do mercado comercial
de sementes. Hoje, as 10 principais empresas de sementes dominam
um terço do mercado mundial. Há 20 anos, as maiores empresas
farmacêuticas tinham cerca de 5% do comércio mundial de medicamentos
receitados. Hoje, as 10 maiores controlam mais de 40% do mercado.
Há 20 anos, 65 empresas de química agrícola competiam no mercado
mundial. Hoje, 9 companhias detêm aproximadamente 90% das
vendas de pesticidas. Há 20 anos, a RAFI (Fundação Internacional
para o Progresso Rural) não monitorava o mercado mundial de
remédios veterinários. No entanto, hoje, 10 empresas detêm
mais de dois terços das vendas mundiais." (MOONEY, 2003,
p.132)
Embora
os dados desta concentração não sejam conhecidos (ou pelo menos
divulgados) para o caso brasileiro, sabe-se que a situação ainda
é pior, já que somos apenas um espaço neste universo global de
intervenção das chamadas organizações transnacionais. As empresas
brasileiras de sementes, só para citar um caso, foram, pouco a
pouco, sendo adquiridas por grandes grupos e, para algumas culturas,
milho e trigo, por exemplo, o monopólio das sementes é um fenômeno
irreversível.
Assistimos,
também, neste momento, à tentativa da Monsanto de, a partir da
liberação da produção e comercialização da soja transgênica, dominar
o mercado, impondo-nos a semente e o agrotóxico que, supostamente,
protege a planta em crescimento. A imprensa, infelizmente, tem
fechado os olhos a esta brutal investida, preocupada em dar guarida
a argumentos aparentemente científicos das vantagens das sementes
transgênicas e, com raras exceções (deve-se louvar o esforço dos
jornalistas ambientais, das ONGs e mesmo da ministra Marina Silva,
pressionada por seus colegas de ministério, seduzidos pelo "canto
da sereia" da biotecnologia), inclui outros elementos neste
debate.
Na
verdade, é preciso avançar mais nesta análise, agregando a contrapartida
desta expansão empresarial. O avanço da soja pelo cerrado e pela
floresta brasileira, a utilização intensiva da água para irrigação
das monoculturas, o despejo impressionante de veneno no campo
(inseticidas, pesticidas etc) para combater as pragas, cada vez
mais resistentes, têm desencadeado um processo criminoso de erosão
ambiental.
A
cada ano, milhares de espécies vegetais e animais são extintas,
a devastação das matas e florestas ocorre num ritmo alucinante,
a água doce torna-se patrimônio de poucos e o seu consumo supera
à capacidade de renovação. Com tudo isso, a biodiversidade se
vê profundamente ameaçada, porque a destruição dos ecossistemas
compromete o futuro dos seres vivos.
Para
quem acredita que apenas as plantas e animais estão em perigo,
é fundamental ter sempre em mente que estamos todos nós no mesmo
barco e que dependemos da água limpa, dos alimentos não contaminados,
de alternativas sintonizadas com a nossa cultura para sobrevivermos.
A idéia, ainda propagada especialmente pela mídia, de que o meio
ambiente é externo à vida humana ( e que temos o direito de nos
apropriarmos dele para satisfazer as nossas vontades e nossas
ambições) não resiste a uma análise mesmo que superficial .
Essa
erosão ambiental integra um processo maior de erosão, da qual
podemos, de imediato, citar a erosão cultural. Voltemos a Pat
Mooney para recuperarmos alguns dados contundentes:
"A
cada ano se extinguem 2% das línguas do planeta; Mais de 80%
de todos os livros traduzidos são traduzidos para apenas quatro
línguas européias... seis companhias multinacionais (todas
do Norte) controlam 80% do mercado mundial de música gravada...
(MOONEY, 2003, p.28 e 40)
Essa
erosão é particularmente penosa para a sociedade, porque ela compromete
o futuro do planeta. Cada língua nativa que desaparece leva consigo
um conhecimento vital, secular. Com isso, deixamos de tomar contato
com o vasto e rico "saber popular", cristalizado em
informações sobre plantas e seus usos, sobre espécies animais,
sobre formas de interação com a natureza, sobre manejo, sobre
a própria vida humana. Novamente, Pat Mooney dá o alerta:
"Tragicamente,
toda essa erosão ambiental chega num momento de erosão de
conhecimento igualmente sem precedentes. Em 1990 calcula-se
que havia no mundo 10.000 línguas, mas hoje sobrevivem apenas
6.700. E apenas 50% das que subsistem são ensinadas às crianças.
Isto quer dizer que numa geração a metade das línguas atuais
estará efetivamente extinta. Alguns estudos afirmam que 90%
das línguas faladas em 1999 serão "história" em
2099. A metade das línguas que existem hoje tem menos de 10.000
falantes (e a metade delas menos de 1.000 falantes). Já na
atualidade, um terço das terras da América do Sul estão ocupadas
por pessoas que não falam nenhuma língua indígena." (MOONEY,
2003, p.35)
Estamos,
portanto, em nome do progresso, destruindo identidades, sem percebermos
que essa diversidade cultural, assim como a biológica, é que nos
garantem o futuro. A cultura homogeneizada, assim como a uniformidade
biológica, nos deixa vulneráveis porque nos submete a soluções
únicas, a interesses monopolistas e, sobretudo, retira a nossa
capacidade de enxergar o outro enquanto parceiro. A erosão cultural
e ambiental parte do pressuposto de que há dominadores e dominados
e de que os mais produtivos (o conceito de produtividade moderno
privilegia apenas a vertente econômica) devem prevalecer.
Talvez,
por isso, os empresários e os governos (cúmplices deste processo
de erosão) não façam a conta certa no momento de analisar a apropriação
do ambiente pelo setor produtivo , contemplando o futuro com miopia.
Numa perspectiva moderna, que considere o saber ambiental e a
economia baseada em princípios ecológicos, não seria fácil justificar
a produção intensiva, a monocultura exportadora, sem levar em
conta o uso indiscriminado de recursos naturais. Para quem está
preocupado apenas com a receita ("exportar é o que importa",
este é o lema das economias e governos irresponsáveis!), não faz
mesmo sentido imaginar que um quilo de carne de frango, obtido
a partir do consumo elevado de energia (solo, água, sol etc),
possa exaurir, a médio prazo, os nossos recursos . Para os que
manipulam números e se extasiam com a notícia de que estamos batendo
recordes sucessivos na produção de grãos, pouco importa se estamos
comprometendo o meio ambiente, devastando ecossistemas, erodindo
a biodiversidade. As políticas públicas, que se respaldam nessa
perspectiva economicista, estarão, certamente, voltadas para fora
(daí o esforço para modernizar os portos, ampliar a malha viária,
enfim fazer circular produtos que serão consumidos , quase sempre,
pelas populações e animais das nações hegemônicas), deixando sem
proteção as populações nativas (em especial, os indígenas), as
florestas tropicais e a água dos nossos rios.
Com
respeito à água, só para não deixarmos de mencionar o descalabro
que se comete contra esse fundamental recurso para a vida, é preciso
lembrar que a estamos consumindo irresponsavelmente, em grande
parte para sustentar a indústria em expansão. Cerca de 400 mil
litros de água são utilizados, em média, para se produzir um carro
e talvez esse dado explique o fato de, pouco a pouco, as montadoras
internacionais (com incentivos fiscais dos Governos, que, demagogicamente,
contabilizam empregos gerados e não os prejuízos ao meio ambiente)
estarem transportando as suas fábricas para os países subdesenvolvidos
. A indústria de computadores, nos EUA, consome um volume brutal
de água doce desionizada, algo estimado em 1.500 bilhão de litros,
devolvendo ao ambiente mais de 300 bilhões de litros de água com
resíduos A indústria da mineração e do petróleo (só "na província
canadense de Alberta, mais de 204 bilhões de litros de água, grande
parte proveniente de aquíferos, são bombardeados para dentro de
poços de petróleo todos os anos para aumentar a pressão no reservatório
e aumentar a produção"). O crescimento do uso da irrigação
em ritmo incontrolável contribui para essa perda e desperdício
(o sistema tradicional chega a desperdiçar 80% da água). Estima-se
que, hoje, em todo o mundo, existam 230 milhões de hectares de
terra submetidas à irrigação e cita-se o caso da China que, para
subsidiar este sistema, construiu mais de 2 milhões de poços nas
últimas 4 décadas. Não se pode ignorar também o caráter predador
de inúmeras empresas que exploram o mercado , em expansão vertiginosa,
inclusive no Brasil, da água engarrafada e que tem contribuido
para a privatização de um bem comum.
"Pior
ainda, a procura inexorável por suprimentos de água seguros
para alimentar os apetites insaciáveis das corporações de
engarrafamento de água está produzindo efeitos prejudiciais.
Em comunidades rurais ao longo de grande parte do planeta,
a indústria tem comprado áreas cultivadas para explorar os
poços, mudando-se assim que os poços são esvaziados. No Uruguai
e em outras partes de América Latina, as corporações de água
estrangeiras têm comprado vastas áreas de selva e até mesmo
sistemas de água inteiros para conservar para o desenvolvimento
futuro. Em alguns casos, essas empresas acabam escoando o
sistema de água da área inteira, não apenas da água em suas
terras." (BARLOW;CLARKE, 2003, p.173-4)
Além
do uso intensivo da água, que deveria ser reservada para o consumo
humano, as grandes empresas, notadamente as que atuam na produção
de substâncias químicas, papel e celulose, fertilizantes , agrotóxicos
em geral poluem as águas e o solo de maneira irreversível. A ação
dos Governos se limita a impor multas, que quase sempre não são
pagas (pelo menos é o que acontece no Brasil), a quem polui, ao
invés de aumentar a fiscalização para evitar que os danos ocorram.
Novamente, assim como na área da saúde, gasta-se para curar a
doença , mas não se investe na prevenção.
A
imprensa , quase sempre alheia a este cenário, não assume uma
postura crítica, mais abrangente, ao lidar com as questões ambientais
e reduz a cobertura à denúncia de vazamentos de óleo ou à extinção
de espécies animais, tratando-os como acidentes eventuais. Não
consegue enxergar que , estruturalmente, em função da expansão
acelerada do capital e da irresponsabilidade de empresários inescrupulosos
e de governos por eles financiados, o assalto ao meio ambiente
acontece todos os dias. Imagina, portanto, que é possível , com
atitudes simplistas, evitar que esse processo de degradação do
ambiente se aprofunde. Em se tratando do meio ambiente, quase
sempre, ainda que seja mais traumático, é mais apropriado fazer
uma cirurgia do que aplicar pomada no curativo. Com paliativos,
os problemas não são resolvidos, mas apenas postergados.
A
síndrome da erva daninha
A
imprensa brasileira tem feito, sem espírito crítico, a apologia
do modelo economicista e agroexportador, que contempla a preservação
da biodiversidade como um entrave ao desenvolvimento; a adesão
sem limites à biotecnologia , com a legitimação da pesquisa e
da ciência, como a única saída para o crescimento. Invariavelmente,
vê também o conhecimento popular como exótico e primitivo.
Na
prática, ela não tem discutido a fundo as implicações da consolidação
deste modelo e tem assumido, ingenuamente, um conceito "cosmético"
de sustentabilidade. Seduzida pelo marketing verde e pelos releases
de empresas que, supostamente, praticam a chamada gestão ambiental,
a imprensa tem difundido equivocadamente este conceito, legitimando
ações nefastas contra o meio ambiente. De alguma forma, ela aproxima
os conceitos de desenvolvimento sustentável ao de progresso tecnológico,
sem perceber que ambos se respaldam na perspectiva da racionalidade
econômica aplicada à natureza, vista sempre como fornecedora de
insumo para o sistema de produção capitalista.
Como
afirma Mauro Oliveira Pires, " a expansão do mercado é fundamental
para assegurar as taxas de lucros às empresas, o que permite o
investimento em tecnologia para ampliar e reproduzir o mercado.
Na opulência do sistema de apropriação, é necessário produzir
cada vez mais mesmo que haja desperdício de matéria prima e energia."
(PIRES, 2003, p.376)
A
imprensa está convicta de que sempre é possível compatibilizar
o crescimento econômico acelerado com a preservação do meio ambiente
e, com isso, contribui para desarmar os espíritos e as mentes
para a visualização das ações predatórias das empresas. A racionalidade
empresarial, apoiada em maior produtividade e eficiência, não
poupa, necessariamente, como insinua a mídia, os recursos naturais;
pelo contrário, promove a sua degradação em nome do progresso.
Neste
sentido, o conceito tradicional de desenvolvimento sustentável
como o tipo de desenvolvimento que "atende às necessidades
do presente sem comprometer as possibilidades de as gerações futuras
atenderem às suas próprias", está definitivamente comprometido.
É
possível perceber, no momento, outras situações similares, como
a que caracteriza a difusão do conceito de responsabilidade social,
aliás estreitamente associada ao de desenvolvimento sustentável.
A imprensa, novamente sem exercer o papel que dela se espera,
tem abrigado e difundido informações que visam formar a imagem
positiva de organizações que, em sua essência e na sua prática,
atentam contra a ética, a transparência e a própria vida dos cidadãos.
Ela aceita como ação socialmente responsável os repetidos recalls
das montadoras de automóveis, sem questionar os motivos pelos
quais eles acontecem cada vez em maior número; ela festeja as
campanhas da indústria de cigarros e de bebidas que, de maneira
cínica, convidam os jovens, respectivamente, para fumar e beber
com moderação e noticia novos medicamentos , sem questionamento,
envolvendo-se, promiscuamente, nas estratégias de marketing da
indústria farmacêutica.
A
imprensa, que se pauta, como vimos, por fontes externas, reporta
a expansão da soja pelo cerrado e pela floresta como entusiasmo
e é incapaz de se dar conta de que esse avanço irresponsável sobre
a biodiversidade brasileira tem efeitos dramáticos para a nossa
fauna, para a nossa flora, para a nossa cultura, enfim para a
nossa sobrevivência. Ela comunga com a visão empresarial, racionalista,
mesquinha, de que o aumento das exportações (que , para os empresários,
significa incremento dos lucros) justifica qualquer ação, repetindo
também o discurso hipócrita de ministros, comprometidos com essa
perspectiva economicista, mesmo porque, invariavelmente, eles
têm sido recrutados da elite empresarial.
As
grandes chamadas da imprensa estão voltadas para os sucessivos
recordes de produção de grãos, sem se dar conta de que eles têm
sido obtidos com culturas de exportação e que, paradoxalmente,
quanto mais se produz, mais o custo dos alimentos aumenta internamente.
Raramente, os veículos de comunicação contrapõem o aumento da
produção de soja, por exemplo, à redução da produção de alimentos
que constituem o "prato diário" do brasileiro e, quando
dispõem desses dados, os vislumbra como naturais, como acidentes
de percurso, como um mal necessário do desenvolvimento.
A
imprensa , que faz a apologia do agronegócio como responsável
pelo saldo em nossa balança comercial, não consegue perceber quem
são os maiores beneficiados por essa expansão agrícola e não se
pergunta porque "o aumento do bolo" não tem como contrapartida
a partilha dos pedaços para os diversos segmento da sociedade.
A imprensa não sabe fazer contas e, por isso, não consegue formular
uma pergunta óbvia: se a produção de grãos mais que duplicou em
uma década como pode ter a fome aumentado no Brasil?
Esse
equívoco tem se repetido quando focaliza a questão dos transgênicos,
porque, não raras vezes, a imprensa endossa o argumento dos produtores
de biotecnologia de que os transgênicos aumentarão a produtividade
agrícola ( o que, definitivamente, não está comprovado!) e que,
em consequência, a fome no mundo poderá ser mais eficazmente combatida.
Esquece-se ela de que os países ricos, onde está a sede destas
empresas, têm paulatinamente aumentado os subsídios aos seus produtores
(vide o caso dos Estados Unidos e da Comunidade Européia) e criado
entraves aos países em desenvolvimento, jogando, portanto, na
contramão deste argumento falacioso.
A
imprensa brasileira, que tem tratado a reforma agrária em suas
páginas policiais, não percebe, também, que a preservação da biodiversidade
tem estreita relação com o acesso à terra, porque o modelo de
ocupação e de exploração dos nossos recursos naturais , que privilegia
a monocultura exportadora, é que tem provocado a degradação do
meio ambiente. A agricultura intensiva, não a familiar, embora
possa, a curto prazo, contribuir para as exportações (e, efetivamente,contribui)
não democratiza os lucros: quando muito estimula o surgimento
de novas cidades no meio do sertão (assim como faz a indústria
da mineração no norte brasileiro) , que, ao longo do tempo, se
tornarão refúgio de pessoas sem esperança.
A
imprensa assume como inevitável e, o que é pior, como positiva
a adesão à chamada "cultura química" e noticia, sem
qualquer postura crítica, a concentração das empresas produtoras
de agrotóxicos , sem preocupar-se com o fato de que , ao utilizarmos
intensivamente pesticidas, inseticidas e outros venenos, estamos
comprometendo a saúde da terra, da água e a nossa própria saúde.
O número de casos de intoxicação por agrotóxicos no País é alarmante,
mas, com raras exceções, a mídia prefere frequentar os escritórios
refrigerados dos fabricantes que os corredores dos hospitais (como
o da Unicamp, em Campinas) para confrontar a realidade do crescimento
econômico com a da degradação social.
A
imprensa, infelizmente, não consegue perceber os vínculos estreitos
entre representantes da comunidade científica e a comunidade empresarial,
acreditando que as fontes da ciência, em princípio, não têm compromissos
além dos muros das universidades e das paredes dos laboratórios.
Assume, portanto, a neutralidade científica que, assim como a
jornalística, constituem-se num mito. Os patrocinadores dos projetos
científicos e tecnológicos costumam impor restrições severas à
circulação de informações e, de há muito, a ciência a serviço
do capital perdeu a sua virgindade.
Por
não ter consciência dessa realidade, que está diante dos nossos
olhos, a imprensa (e os governantes), invocaram a neutralidade
científica no debate sobre os transgênicos , como se os atores
envolvidos (as empresas, os ministros, os cientistas) fossem absolutamente
isentos. Se os jornalistas se dispusessem a investigar, veria
que muitos cientistas assinam colunas nos jornais , ao mesmo tempo
que são diretores do Conselho de Informação em Biotecnologia,
uma entidade (uma ONG dá para acreditar?) que é financiada pelas
grandes empresas da área
A
imprensa esforçou-se, neste episódio, a serviço das empresas,
para vender a idéia de que os ambientalistas estavam ideologizando
o debate, apoiada numa visão ingênua de ciência isenta, neutra,
sem compromissos, como se estivéssemos num mundo ideal, onde a
relação entre produção do conhecimento e poder (econômico, político,
cultural) não existisse.
Os
meios de comunicação, pouco acostumados à cobertura das políticas
públicas de Ciência e Tecnologia, não as questionam e, desta forma,
não conseguem descobrir como os reduzidos investimentos em C &
T, direcionados para a solução dos problemas da Amazônia (apenas
4% do total ) , podem perpetuar as desigualdades e ameaçar o estudo
e a proteção da biodiversidade brasileira.
A
mídia, outra vez ingenuamente, faz alarde da tranversalidade (políticas
públicas definidas a partir de várias instâncias ou ministérios),
quando, evidentemente, há um desequilíbrio escandoloso no Governo.
O orçamento do Ministério do Meio Ambiente representa apenas 0,1%
do total e, para ser claro, com isso, não se garante, como tem
apontado o Instituto Socioambiental, ao menos a manutenção e a
fiscalização dos nossos recursos naturais.
Incomoda,
particularmente, na cobertura do meio ambiente o que podemos chamar,
parodiando Vandana Shiva, de "síndrome da erva daninha",
uma visão que penaliza toda aquela biomassa , toda cobertura vegetal
que não se presta para uso industrial. Ela está associada com
o desconhecimento e o preconceito em relação ao saber tradicional.
"
O primeiro plano da violência desencadeada contra os sistemas
locais do saber é não considerá-los um saber. A invisibilidade
é a primeira razão pelo qual os sistemas locais entram em
colapso, antes de serem testados e comprovados pelo confronto
com o saber dominante do Ocidente. A própria distância elimina
os sistemas locais da percepção. Quando o saber local aparece
de fato no campo da visão globalizada, fazem com que desapareça
negando-lhe o status de um saber sistemático e atribuindo-lhes
os adjetivos de "primitivo" e "anticientífico."
(SHIVA, 2003, p.23)
A
mídia se apóia numa perspectiva positivista da ciência, que não
reconhece a relação entre saber, conhecimento e poder e, de maneira
equivocada, reforça a superioridade cognitiva da ciência moderna.
Ao ignorar (ou desprezar) o saber local, a imprensa , como as
empresas, eliminam o espaço para o surgimento de alternativas.
Ela legitima a ação dos grandes interesses, que, ao contemplarem
a floresta (contemplar pode ser um verbo muito delicado para quem
tem a volúpia da destruição), vêem apenas a madeira valiosa, o
princípio ativo extraído das plantas e dos animais, que pode ser
consolidado em medicamentos altamente lucrativos, mas não conseguem
vislumbrar, porque não lhes interessa, a floresta como um sistema
biológico completo, que estabelece um "continuum" ecológico
com o seu entorno.
A
imprensa, como os grandes interesses, vêem a floresta apenas como
fornecedora de matéria-prima. Isto significa dar valor para a
floresta apenas quando ela é retirada do seu habitat e, portanto,
fora do seu contexto, e se transforma em capital. Não estabelece
o vínculo entre a biologia , a cultura e a sociedade e, portanto,
relega a segundo plano a importância de se manter a floresta viva.
"A
silvicultura científica foi a falsa universalização de uma
tradição local de exploração dos recursos florestais que nasceu
dos interesses comerciais limitados que viam a floresta somente
em termos de madeira com valor comercial. Primeiro, reduziu
o valor da diversidade da vida das florestas ao valor de umas
poucas espécies que têm valor comercial e depois reduziu o
valor dessas espécies ao valor de seu produto morto
a madeira." (SHIVA, 2003, p. 32)
A
"sindrome da erva daninha"consiste, pois, em descartar
tudo aquilo que não tem valor comercial e a imprensa , ao cobrir
a exploração dos recursos naturais sob a lente das grandes empresas,
age desta forma. A copa das árvores, os frutos silvestres, o dejeto
dos animais, o cipó e a forragem que cobre o chão são , para os
empresários e para a imprensa, que com eles está mancomunada,
erva daninha. Sob esta perspectiva, justifica-se a derrubada da
floresta para a expansão da soja, o uso intensivo de agrotóxicos
, as grandes reservas de eucaliptos, os recordes sucessivos de
produção de um número reduzido de tipos de grãos. Na mão dos empresários
e dos executivos financeiros, a floresta é apenas mais uma commodity.
Como
corolário desta síndrome, a semente deixa também de ser vista
como produto e meio de produção, como explica Laymert Garcia dos
Santos (2003, p.27) :"isto é, grão que será comido e que
servirá como semente no próximo plantio" , e se transforma
em mera matéria prima. Nessa transformação, ela deixa de ser propriedade
do agricultor e da população nativa.
"A
metamorfose tem, evidentemente,várias implicações. Em primeiro
lugar, a semente auto-regeneradora se torna semente estéril
que não se reproduz, quando por definição é um recurso gerador
através da intervenção tecnológica, a biodiversidade
é transformada em recurso renovável em não-renovável; além
disso, a semente agora não produz por si mesma: necessita
outros insumos (adubos químicos etc) que também serão industriais,
isto é uma nova interferência externa no ciclo ecológico da
reprodução da semente. Em segundo lugar, a biotecnologia toma
o todo pela parte e a parte pelo todo: pois trata a semente
auto-regeneradora como mera germoplasma "primário",
e promove a semente estéril e carente a "produto acabado".
Finalmente, ao transformar um processo ecológico de reprodução
em processo tecnológico de reprodução, a biotecnologia retira
a semente das mãos do camponês e do habitante da floresta,
colocando-a na mão das corporações." ( GARCIA DOS SANTOS,
2003, p.27)
Através
do domínio das patentes, as grandes corporações controlam o mercado
de sementes, substituindo as sementes naturais pelas sementes
engenheiradas. Destrói, com isso, a economia local e empurra os
camponeses e as populações ribeirinhas para a zona de exclusão
alimentar. Elas promovem, também, a homogeneização da dieta alimentar,
consolidando novos hábitos, com o apoio maciço da mídia.
"A
intensa propaganda comercial nos meios de comunicação de masa
dos produtos dessas agroindústrias multinacionais de alimentos,
aliado ao estímulo direto e subliminar para o consumo de massa,
tem permitido a mudança dos hábitos alimentares de grande
parte da população para a adoção de dieta alimentar similar
àquela praticada pela classe média assalariada dos grandes
centro urbanos: consumir alimentos originários das agroindústrias."
(MARTINS DE CARVALHO, 2003, p.96)
O
homem do campo, o indígena, o habitante da floresta passa a adquirir
o produto industrializado, quando a natureza a ele oferecia um
substituto natural, tornando-se dependente e empobrecendo-se à
custa das corporações de alimentos.
Essa
situação precisa ser urgentemente revertida e a imprensa (e os
jornalistas) têm um papel importante a desempenhar nesta autêntica
cruzada de conscientização e de mobilização ambiental. Felizmente,
este movimento libertador já teve início, com as mídias ambientais
brasileiras, as ONGs, os educadores ambientais e os profissionais
(advogados, biólogos, ecologistas, agrônomos, médicos, nutricionistas
etc). Esta é uma luta de todos porque preservar a biodiversidade,
a água limpa e a identidade cultural dos povos subdesenvolvidos
tem a ver com a nossa própria sobrevivência.
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Wilson da Costa Bueno
Jornalista, professor do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação Social da UMESP e professor de Jornalismo
da ECA/USP. Diretor da Comtexto Comunicação e Pesquisa
e editor da revista digital Ciência e Comunicação.
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