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Jornalismo
Científico: uma revisão conceitual
Sérgio Bialski*
Manuel
Calvo Hernando assevera que Copérnico, no prefácio dedicado ao
papa Paulo III, escreveu o seguinte: ... a matemática só se escreve
para matemáticos.
No
século passado, um matemático, Georgonne, dizia: "ninguém
pode orgulhar-se de ter dito a última palavra sobre uma teoria
enquanto não a possa explicar em termos simples a qualquer um
que encontre na rua.
E,
há alguns anos, o físico americano Robert Oppenheimer afirmava,
dirigindo-se à imprensa: "esperamos dos jornais que contribuam
a manter livres os caminhos da verdade e da comunicação, a fim
de que os homens se mantenham de certo modo unidos num saber comum
e numa humanidade comum.
Estas
três citações resumem, para Calvo Hernando, "um largo caminho
percorrido desde o conceito minoritário e quase secreto da ciência
até a gostosa e unânime participação atual do homem de rua na
grande aventura do conhecimento. Uma participação que não é, por
suposto, satisfatória como desejaríamos, nem afeta a todos os
seres humanos, como tampouco os afeta a luz elétrica, a medicina
ou o alfabeto, mas que se amplia com o passar do tempo, num ritmo
cada vez mais vivo e exigente. Uma participação que deverá permitir
um dia completar esta trilogia de citações, com que se iniciou
a exposição, com esta outra de Michel Rouzé: "não é tão quimérico
esperar que um dia os conceitos que representam as fórmulas da
mecânica ondulatória entrem no patrimônio do sentido comum, como
entraram a dos antípodas ou do heliocentrismo do nosso sistema
planetário. Uma parte desta missão corresponde ao jornalista,
ao divulgador científico´ ". (1) Como se percebe, o autor
utiliza como sinônimos os conceitos de jornalista científico e
divulgador científico.
Vera
Lúcia Santos, em seu escrito João Ribeiro como jornalista científico
no Brasil (1895-1934), discordando de Calvo Hernando, diz
que "alguns autores especializados em jornalismo científico
costumam empregar esse termo como sinônimo de divulgação científica,
com o que não concordamos. Divulgação, vulgarização ou popularização
da ciência - diz ela - é a capacidade de torná-la pública, de
tal forma que ela seja inteligível aos leigos, sem que isso implique
necessariamente em fazer jornalismo científico". Para Santos,
"a divulgação científica pode ser feita através de artigo
publicado na imprensa diária ou qualquer outro meio de comunicação,
e ainda em revistas especializadas, conferências ou mesmo obras.
Cabe ao próprio cientista divulgar aos seus colegas o resultado
de suas experiências sem a preocupação de serem entendidos pelo
grande público. Quanto aos jornalistas, quando procuram traduzir
a mensagem do cientista visando atingir diretamente o leitor,
estão divulgando ciência, mas, sobretudo, fazendo jornalismo científico.
Em ambos os casos, o que distingue o jornalismo científico da
divulgação científica é meramente uma questão de objetivo com
relação ao comunicador da mensagem". (2)
Wilson
Bueno, refutando Vera Santos, diz: "não concordamos com esta
tese. Acreditamos que os objetivos do jornalista científico e
do divulgador científico não são muito diferentes: em termos gerais,
ambos se preocupam em transferir aos não-iniciados informações
especializadas de natureza científica e tecnológica. Na prática,
o que distingue as duas atividades não é o objetivo do comunicador
ou mesmo o tipo de veículo utilizado, mas, sobretudo, as características
particulares do código utilizado e do profissional que o manipula.
José Reis, certamente a maior expressão do Jornalismo Científico
em nosso País, utiliza os termos de maneira indiscriminada, tratando-os
efetivamente como sinônimos" . (3)
A
intertextualidade, ao permitir-nos observar o rico confronto de
pontos de vista, dá-nos também a tarefa de buscar um caminho de
conciliação. A despeito do rigor conceitual de cada autor, parece
haver consenso quanto ao fato de que o mau emprego da expressão
original Scientific Journalism tem gerado, em nossa língua,
inúmeros equívocos e confusões.
Consenso
também há quanto ao fato de que o Jornalismo Científico deve apropriar-se
das características enunciadas por Otto Groth para o Jornalismo:
atualidade, universalidade, periodicidade e difusão. (4)
Roberto
Pereira Medeiros, valendo-se dos ensinamentos de Bueno, diz que
no Jornalismo Científico "a característica de atualidade
é preenchida pelos fatos (eventos, descobertas) ou pessoas (cientistas,
tecnólogos, pesquisadores) que estejam diretamente ou indiretamente
relacionados com o momento presente; ao abrigar os diferentes
ramos do conhecimento científico, o Jornalismo Científico preenche
a característica da universalidade; a periodicidade
se dá pela manutenção do ritmo das publicações ou matérias, certamente
antes em conformidade com o desenvolvimento peculiar da ciência
do que com o próprio ritmo de edificação dos veículos jornalísticos
(oportunidades, segundo Groth); a característica de difusão
é preenchida pela circulação do material pela coletividade à qual
se destina". (5)
Manuel
Calvo Hernando faz um interessante comentário ao dizer que "o
jornalista científico deve ser, antes de tudo, jornalista. (...)
Deverá ser jornalista e queremos significar com isto que deverá
ser na mais ampla acepção da palavra. Há de ser homem completo,
aberto a seu tempo, familiarizado com os problemas do mundo em
que vive, dotado de curiosidade universal e penetrado nas técnicas
de seu ofício informativo". (6)
Pode-se
perceber que as especificidades requeridas ao Jornalismo Científico,
e ao profissional que dele faz uso, aproximam-se do próprio conceito
de rigor da ciência (seja no trato da apuração e análise dos dados,
precisão lingüística e transmissão do conhecimento), o que, no
entanto, não pode prejudicar o entendimento do receptor.
Hillier
Krieghbaum, a propósito disso, dizia que "para fazer um trabalho
realmente competente é necessário mais do que faro jornalístico.
Um repórter científico deve estar suficientemente alerta - subentendendo-se
assim um conhecimento das bases da ciência pura, da
tecnologia e da medicina". (7) Segundo Krieghbaum, "o
repórter científico bem preparado também precisa saber como escrever
- na linguagem do homem comum". (8) Para ele, se se pretende
"responder adequadamente às demandas da exatidão científica
é preciso estar de posse de detalhes suficientes para reproduzir
a experiência concreta e para possibilitar um julgamento científico
baseado na qualidade dos resultados originais. (...) Para a exatidão
jornalística ou de manchetes é imprescindível uma noção correta
ou uma idéia geral do interesse das descobertas científicas para
os não-cientistas". (9)
Em
artigo escrito em 1988, José Reis, o divulgador da ciência,
para a revista Ciência e Cultura, da Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência, Osvaldo Frota-Pessoa listou algumas
regras básicas para os que atuam com divulgação científica, sejam
cientistas ou jornalistas. Eis alguns dos conselhos de Frota-Pessoa:
"-
Coragem para dispensar a precisão e apelar para analogias, generalizações
e aproximações, e coragem para parecer, por isso, ignorante;
-
Ser simples, direto e nobre (como Homero), pois sem a nobreza
cai-se na caricatura da ciência, no sensacionalismo;
-
Pensar maduramente no tema e no propósito da publicação, deixando
o estudo sedimentar antes de escrever;
-
Abdicar do jargão científico: o que interessa são fatos e conceitos
e não palavras;
-
Escrever de forma enxuta, sem rebuscamentos nem modismos;
-
Escrever com clareza sobre o que com clareza se entendeu;
-
Explicar a ciência e desmascarar a pseudociência, a partir dos
fatos do dia;
-
Tratar as novidades, mas também o que é maravilhosamente banal
(como o desabrochar das flores)". (10)
Ao
se referir à função que mais tem recebido atenção do Jornalismo
Científico (a educativa), José Marques de Melo afirma que o jornalismo
deve na sociedade:
"a)
cumprir a atividade educativa dirigida à grande massa;
b)
popularizar o conhecimento produzido nas universidades e institutos
de pesquisa;
c)
usar linguagem acessível ao cidadão comum;
d)
despertar o interesse pelos processos científicos no público;
e)
conscientizar a população que paga impostos;
f)
realizar um trabalho de iniciação dos jovens ao mundo do conhecimento
e da educação continuada dos adultos". (11)
Vale
lembrar que Bueno sistematizou esses deveres do Jornalismo Científico
em seis funções básicas: informativa, educativa, cultural, social,
econômica e político-ideológica.
Em
sua tese de livre-docência, defendida na ECA/USP, José Marques
de Melo, ao definir Jornalismo Científico, atenta para a abrangência
do conceito ao caracterizá-lo como "um processo social que
se articula a partir da relação (periódica/oportuna) entre organizações
formais
(editoras/emissoras)
e coletividades (públicos/receptores) através de canais de difusão
(televisão,
rádio,
cinema, jornal, revista) que asseguram a transmissão de informações
(atuais) de natureza científica e tecnológica em função de interesses
e expectativas (universos culturais ou ideológicos)". (12)
Luciana
Miranda Simões, citando Bueno, insere também os seguintes aspectos
no conceito de Jornalismo Científico:
"
a) a postura crítica do jornalista em não aderir ao movimento
de alguns cientistas e intelectuais que fazem a apologia dos fatos
e das informações científicas, imprimindo à ciência um caráter
fetichista; b) a incorporação das ciências humanas, bem como das
técnicas e processos mais simples, derrubando o preconceito de
que só é considerado objeto do jornalismo científico o conjunto
de teorias complexas e aplicações tecnológicas avançadas".
(13)
Segundo
Juan Alberto Verga, "não existe notícia melhor e mais importante
do que uma descoberta científica ou um avanço tecnológico que
podem, inclusive, mudar o processo histórico num determinado momento".
(14) Já para Vera Lúcia Santos,o Jornalismo na área de saúde consiste
"na informação de fatos, personalidades e acontecimentos
relacionados ao campo da ciência, veiculada através dos meios
de comunicação de massa e transmitida em linguagem acessível ao
grande público". (15)
As
posições de Juan Alberto e Vera Santos encerram questões polêmicas.
Em relação ao primeiro autor, sua posição - muito comum entre
profissionais e estudiosos da área -, é refutada por Wilson Bueno
pelo fato de promover a atividade científica, apegando-se à sua
capacidade de mudar o mundo a partir do saber preciso, objetivo,
racional e universal; no que concerne a Santos, Bueno assevera
que reduzir o processo de divulgação científica aos meios de comunicação
de massa legitima a atividade jornalística ao caminho de mão única
hoje praticado, reproduzindo a estrutura anti-democrática do saber
científico e tecnológico. Ademais, cumpriria descobrir o que
e qual seria esta linguagem acessível ao grande público.
Para
Moore, "ciência é quase sempre um negócio ambíguo; os jornalistas
envolvidos na cobertura científica têm que conviver com este fato.
Além disso - afirma - os jornalistas podem reportar os argumentos
e contra-argumentos dos vários lados de uma disputa com facilidade,
mas não estão adequadamente preparados para avaliá-los com imparcialidade".
(16)
Nesta
mesma linha, Stephen Klaidman afirma que, "na cobertura de
saúde, repórteres e editores também trabalham com resultados científicos
incertos, hipóteses não testadas em seres humanos, teses contraditórias
sobre o mesmo tema, além de interesses econômicos e políticos".
Para ele, "apesar desses problemas não serem exclusivos do
jornalismo de saúde, acabam tendo implicações maiores nessa área.
Em política ou economia, um grupo limitado de leitores se interessa
pelos temas abordados e adquire a esperteza e a sofisticação necessárias
para acompanhar a especificidade deles. Esse grupo de leitores
aprende a ler as entrelinhas, avaliar as fontes mesmo quando não
estão indicadas, reconhecer os interesses políticos e entender
pelo menos o básico sobre os aspectos técnicos do assunto. O mesmo
não vale para a saúde: apesar de haver um grupo limitado que sabe
como ler as matérias, praticamente todas as pessoas estão interessadas
nessa área, mesmo que não entendam o mínimo de ciência".
(17)
Para
Dorothy Nelkin, a cobertura sobre possíveis riscos para a saúde
(donde pode-se salientar os riscos adversos de um dado medicamento)
tem sido considerada "histérica, sensacionalista e confusa,
e as explicações para isso são:
ao reportar incidentes, os jornalistas
têm pouquíssimo tempo para pesquisar a fim de dar ao leitor
uma análise independente sobre os fatos;
como a imprensa não tem condições para
desenvolver uma investigação independente e cientificamente
competente sobre o caso, é obrigada a confiar em fontes envolvidas
com a questão e com interesses a defender. É comum tais fontes
tentarem influenciar a cobertura da imprensa;
em busca de respostas definitivas, a
imprensa tende a rejeitar declarações de cientistas que tentam
explicar que eles mesmos ainda não sabem avaliar a extensão
de determinado risco;
a imprensa dissemina a idéia de que a
ciência possui todas as soluções. Ao agir assim, perpetua-se
uma falsa imagem de ciência e de sua contribuição para a sociedade".(18)
Na
busca pela melhor forma de atrair o público para a informação,
Nelkin aponta alguns desvios cometidos pelo Jornalismo Científico,
dos quais destacamos: figuras de linguagem são utilizadas em detrimento
do conteúdo científico; e fatos científicos acabam gerando esperança,
entusiasmo prematuro e expectativas otimistas demais e depois
caem em desilusão quando não se concretiza
Aaron
Cohl analisa com sensibilidade a forma pela qual a mídia apavora
ou nutre as esperanças dos leitores. Parte ele do pressuposto
de que a ciência e o jornalismo têm diferenças conceituais quase
que irreconciliáveis, que originam a maioria dos erros. "Cientistas
sempre lidam com probabilidades. Eles não dizem este produto
causa câncer, mas sim que parece haver alguma relação entre
o produto e o crescimento de células cancerosas em animais de
laboratório". Esse tipo de declaração, segundo Cohl, "não
combina de forma alguma com o tipo de informação que a mídia busca.
A mídia busca verdades que, mesmo relativas, tenham a capacidade
de ser convertidas em absolutas, qual um veredicto simples e definitivo
que levante o interesse do público e seja facilmente apreendido".
(19)
De
fato, conforme lembra Luciana Simões, "a ciência possui uma
característica que exerce forte influência sobre a imprensa: a
autoridade de suas teorias. Além de autoridade suprema, a ciência
é pura e neutra, incapaz de deixar-se corromper". (20)
Para
a filósofa Marilena Chauí, "a ciência contemporânea funda-se
nos seguintes pilares:
na distinção entre sujeito e objeto do
conhecimento, que permite estabelecer a idéia de objetividade,
isto é, de independência dos fenômenos em relação ao sujeito
que conhece e age;
na idéia de método como um conjunto de
regras, normas e procedimentos gerais, que servem para definir
ou construir o objeto e para o auto-controle do pensamento
durante a investigação e, após esta, para a confirmação ou
negação dos resultados obtidos;
nas operações de análise e síntese, isto
é, de passagem do todo complexo às suas partes constituintes
ou de passagem das partes ao todo que as explica e determina;
na idéia de lei do fenômeno, isto é,
de regularidades e constâncias universais e necessárias, que
definem o modo de ser e de comportar-se do objeto, seja este
tomado como um campo separado dos demais, seja tomado em suas
relações com outros objetos ou campos de realidade;
na criação de uma linguagem específica
e própria, distante da linguagem cotidiana e da linguagem
literária".(21)
Somente
pelo último pilar proposto por Chauí já se pode perceber a problemática
que se abre entre Ciência e Jornalismo. Para ela, "a linguagem
cotidiana é conotativa e polissêmica, ou seja, as palavras possuem
múltiplos significados simultâneos, subentendidos, ambigüidades
e exprimem tanto o sujeito quanto as coisas; a linguagem científica
destaca o objeto das relações com o sujeito, separa-o da experiência
vivida cotidiana e constrói uma linguagem puramente denotativa
para exprimir sem ambigüidades as leis do objeto. O simbolismo
científico rompe com o simbolismo da linguagem cotidiana construindo
uma linguagem própria, com símbolos unívocos e denotativos, de
significado único e universal. O ideal de cientificidade impõe
às ciências critérios e finalidades que, quando impedidos de se
concretizarem, forçam rupturas e mudanças teóricas profundas".
(22)
Claro
está que o discurso científico é um discurso instituído. De forma
muito feliz, Marilena Chauí usa o termo discurso competente como
sendo "aquele que pode ser proferido, ouvido e aceito como
verdadeiro ou autorizado. Em um mundo como o nosso, que cultua
patologicamente a cientificidade, não é qualquer um que pode dizer
a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer
circunstância. O discurso competente confunde-se, pois, com a
linguagem permitida ou autorizada, a saber, com um discurso no
qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos como
tendo o direito de falar e ouvir, no qual os lugares e as circunstâncias
já foram predeterminados para que seja permitido falar e ouvir
e, enfim, no qual o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo
os cânones da esfera de sua própria competência" (23). Por
este motivo - continua Chauí - "aceita-se a ideologia da
competência, a partir da idéia de que há, na sociedade, os que
sabem e os que não sabem, que os primeiros são competentes e têm
o direito de mandar e de exercer poderes, enquanto os demais são
incompetentes, devendo obedecer e ser mandados. A sociedade é
dirigida e comandada pelos que sabem e os demais devem executar
as tarefas que lhes são ordenadas. Assim surge a crença na mitologia
da ciência como se fosse magia e poderio ilimitado sobre as coisas
e os homens, dando-lhe o lugar que muitos costumam dar às religiões,
como um conjunto doutrinário de verdades intemporais, absolutas
e inquestionáveis". (24)
Sérgio
Adeodato endossa as opiniões de Chauí, ao afirmar que "a
visão de mundo que é captada pelo jornalismo científico através
de suas fontes e irradiada a todo o ambiente é a da ciência como
solução para todos os problemas da humanidade. O cientista passa
a ser o dono da verdade final e indiscutível. O jornalismo, nas
informações sobre política e, mais atualmente, sobre as notícias
de economia, tem demonstrado como regra certo ceticismo em relação
às informações que vêm do governo, das empresas ou de outras instituições.
Na captação e redação das matérias sobre ciência, no entanto,
não há ainda a veiculação de polêmica, de questionamento sobre
resultados de projetos científicos e/ou tecnológicos, cuja divulgação
nos jornais serve mais para destacar instituições e/ou personalidades
científicas. Não há investigação, confronto de idéias e teorias,
nem a discussão sobre a natureza da própria ciência". (25)
Na
opinião de Adeodato, esta forma de perceber os fatos científicos
espalha uma espécie de cultura científica onde não
há espaço para o conhecimento intuitivo. Assim, quando o leitor
recebe as informações no dia seguinte, estará sendo alimentado
com normas estabelecidas, a principal delas é a da objetividade
da ciência. "O que ocorreria com a empresa-editora se passasse
a questionar esses valores e os resultados da pesquisa de um renomado
cientista? E se revelasse os riscos que algumas pesquisas trazem
consigo? Se o repórter fizer isso, poderá perder suas fontes e,
em conseqüência, a credibilidade por parte do ambiente. Muitas
vezes, o cientista se incomoda menos com o sensacionalismo ou
erro de precisão do jornalista do que com o questionamento de
suas conclusões, de sua forma de encarar determinado fato científico".
(26)
Frijof
Capra possui uma visão de mundo que vai ao encontro da posição
de Adeodato. Sua clássica obra O ponto de mutação é a expressão
de um novo paradigma, de uma visão holística de mundo que percebe
a inter-relação de tudo: Ciência, Natureza, Ecologia, Política,
Física Quântica e o Homem. Segundo Capra, "a imagem pública
do organismo humano - imposta à força pelo conteúdo dos programas
de televisão e, especialmente, pela publicidade - é a de uma máquina
propensa a constantes avarias, se não for supervisionada por médicos
e tratada com medicamentos. A noção de poder de cura inerente
ao organismo e a tendência para manter-se saudável não é comunicada,
não sendo valorizada a confiança do indivíduo em seu próprio organismo.
Tampouco é enfatizada a relação entre saúde e hábitos de vida;
somos encorajados a pressupor que os médicos podem consertar tudo,
independentemente de nosso estilo de vida". (27)
Complementando
Capra, o mesmo Adeodato lembra que o reforço dessa noção de vida
e ciência que temos faz com que surjam "os hipocondríacos
ou os que têm grande interesse pelas matérias sobre novas formas
de tratamento, medicamentos lançados no mercado, etc. É uma massa
significativa de leitores que não interessa ao jornal, aos médicos
(fontes) nem às indústrias farmacêuticas perdê-la".(28) É
por essa razão que, para Sérgio Adeodato, "um repórter que
tem cinco matérias diárias sobre ciência para fazer e o editor
que precisa fechar a página em pouco tempo dominam a técnica,
os critérios de seleção de dados e os artifícios usados para estimular
e atender os interesses dos leitores e da empresa, mas o lado
ético e as considerações filosóficas sobre o "dever ser"
do jornalismo científico normalmente fogem à percepção diária
da maioria destes profissionais". (29)
Bernardo
Kucinski sistematizou em seu escrito O jornalismo e a cobertura
de saúde algumas características da relação entre jornalistas
e profissionais da saúde. No que diz respeito ao jornalista, o
autor ressalta:
a) o preparo inadequado para
cobrir a área da saúde, confundindo temas e especialidades,
bem como incapacidade em captar com precisão a devida linguagem;
b) a busca pela legitimação de uma pauta já concluída antes
mesmo de sair da redação, em detrimento da informação verdadeira
e correta, de modo apenas a sustentar determinada teoria;
c) o erro ao considerar o médico como única fonte para dar informações
sobre saúde, desprezando o caráter multiprofissional dessa área
de conhecimento. (30)
Quando
a imprensa reporta novidades de forma promocional, passando ao
público uma mensagem que associa desenvolvimento a soluções mágicas
para os problemas, pode-se supor que as conseqüências são desastrosas.
Nelkin cita, na área de saúde, novos procedimentos e tratamentos
medicamentosos, que costumam ser rotulados como curas definitivas.
De fato, tantas são as novidades levadas ao conhecimento público
em relação ao combate de doenças crônicas como câncer, Aids, diabetes
e mesmo impotência, que parece termos chegado muito próximo da
noção de que a ciência possui, de fato, a cura para todos os males.
Concordamos
com a opinião de Wilson Bueno, segundo a qual "tem havido
uma tendência a explorar, de maneira irresponsável e sensacionalista,
os fatos e resultados da ciência, configurando uma situação constrangedora
para as fontes de informação da área científica e de descrédito
para o próprio Jornalismo Científico". (31)
Estreitando
a relação entre Jornalismo e Ciência, Marques de Melo assevera
o seguinte sobre o tema:
(...)
"o conceito está inevitavelmente impregnado da concepção
de Jornalismo que se pratica nas sociedades capitalistas, na época
contemporânea. Não se trata mais daquele Jornalismo político-social
que predominou do século 18 a meados do século 19 e sim do Jornalismo
ideológico mercantil que se afirmou em fins do século XIX e persiste
até hoje".
(...)
"o Jornalismo contemporâneo se manifesta através do sensacionalismo
(para vender a notícia é preciso despertar as emoções do público
consumidor) e atomização (o real é percebido não em sua totalidade,
mas em seus fragmentos: política, economia, esportes, ciência,
etc). Assim sendo, o Jornalismo Científico é produto típico dessa
ideologia do Jornalismo na sociedade capitalista. Destina-se a
apreender uma parte do real aquela que ocorre nos laboratórios
de pesquisa, que, por sua vez, só se torna notícia quando desperta
a atenção". (32)
Segundo
Bernardo Kucinski, "o jornalismo voltado à saúde, sem deixar
de dialogar com o modelo biomédico da doença, precisa trabalhar
a saúde e a doença a partir de suas determinantes sociais, econômicas
e culturais, devendo o jornalista manter uma postura crítica em
relação aos aspectos espetaculares da cura. Não é a doença do
indivíduo que interessa ao jornalismo. Reportar doenças na cobertura
da saúde coletiva significa discutir os nexos entre essas condições
sociais e o mecanismo causal específico da doença ou da epidemia
e discutir as relações com a sociedade". Para ele, "a
indústria farmacêutica expropriou o instrumento de cura do médico
- o remédio - , dando-se a progressiva medicalização do corpo,
tendo a mídia um papel ideológico destacado. A medicina passou
a abarcar toda uma série de problemas pequenos e situações que
não necessitam drogas ou tratamento clínico - , mas apenas mudanças
de hábitos, alimentação e
comportamento
-, oferecendo a fuga fácil pela droga. Com isso, foi-se reduzindo
a capacidade do indivíduo superar seus problemas e confrontar
o sofrimento, apagou-se a noção da cura por processos naturais
do próprio organismo e foi aumentando sua dependência por medicamentos.
Em todo esse processo, a mídia tem sido usada como instrumento
ideal de convencimento e proselitismo". (33)
Michel
Thiollent, em seu artigo Jornalismo Científico e suas funções
no conjunto da comunicação social, aborda o conceito de ideologia
da ciência, segundo o qual "o homem sempre vence todos
os desafios da natureza". Para ele, deve-se combater com
veemência o que chama de "espetáculo da ciência". (34)
Nos
Cadernos de Jornalismo Científico, Wilson Bueno faz uma
afirmação com a qual, mais uma vez, por força da experiência prática,
concordamos. Segundo ele, "o Jornalismo Científico é financiado
pelas grandes empresas multinacionais, que, através dele, informam
a opinião pública de suas realizações no campo científico e tecnológico.
(...)Como está estruturado, atualmente, o Jornalismo Científico
funciona como instrumento de dominação".(35)
Como
se percebe, não nos falta teoria para entender alguns dos obstáculos
que se colocam no processo de transferência de conhecimento feito
pelo Jornalismo Científico. Esses obstáculos puderam ser mensurados
na última pesquisa de opinião, em nível nacional, sobre o que
o brasileiro pensa a respeito da Ciência e da Tecnologia, realizada
nos meses de janeiro e fevereiro de 1987, encomendada ao Instituto
Gallup pelo Cnpq (Instituto Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico) e publicada sob o título "O que o brasileiro
pensa da ciência e da tecnologia ? (a imagem da ciência e da tecnologia
junto à população brasileira)". (36)
Os
dados deste trabalho demonstram que 70% da população urbana do
Brasil lia sobre ciência e tecnologia, 31% afirmou gostar muito
do assunto e 20% dos adultos declararam trabalhar em alguma área
correlata.
Uma
das perguntas era se os órgãos de comunicação noticiavam, satisfatoriamente,
as descobertas científicas e tecnológicas, e o observado foi que
70% dos entrevistados consideram insuficientes os dados divulgados.
A conclusão do Instituto Gallup foi que, apesar do grande interesse
manifestado, os avanços científicos e tecnológico estão distantes
da vida diária das pessoas. Para elas, a ciência tem relação com
as coisas que estão muito além da compreensão.Atualmente, decorridos
16 anos desta pesquisa, é possível que o índice de 70% tenha aumentado
significativamente, uma vez que a globalização e o uso de novas
tecnologias (ex: Internet) disseminam a informação sobre as descobertas
a uma velocidade cada vez maior.
Há
que se considerar a crítica proposta por Wilson da Costa Bueno,
segundo a qual deve-se "repudiar a visão conservadora que
costuma enxergar os jornalistas como simples intermediários no
processo de divulgação da ciência". Segundo Bueno, "a
importância da ciência e da tecnologia para o cidadão do novo
milênio, extremada pelo advento da Sociedade da Informação e da
Nova Economia, requer de todos, e especialmente dos multiplicadores
de opinião, uma tomada de posição. Exige uma mobilização permanente,
aquele espírito cético a que se referia Carl Sagan, sob pena de
nos vermos de mãos atadas para enfrentar os desafios da nova comunicação
científica, que aproxima, de maneira vertiginosa, e muitas vezes
sutil, informação e marketing, ciência e mercado, tecnologia e
capital financeiro". (37)
Wilson
Bueno defende que esse papel não deve e não será desempenhado
apenas pelos jornalistas científicos, mas por todos aqueles, especialmente
os cientistas, que se preocupam com o sigilo e o controle da informação
e dos resultados de pesquisa, mercê da relação, que pode ser espúria,
entre patrocinadores e produtores de ciência e tecnologia. "Os
meios de comunicação têm, de caso pensado ou por ingenuidade (incompetência,
despreparo), tornado-se cúmplices de interesses políticos, econômicos
e comerciais, atuando como autênticos porta-vozes de indústrias,
governos, institutos de pesquisa ou governos mal intencionados.
Em alguns casos, fica difícil distinguir, dentre o noticiário,
também no de caráter científico, os limites entre a informação
e o marketing, podendo ser identificados com alguma freqüência,
na mídia, releases de imprensa, emitidos por empresas e
entidades, travestidos de notas e notícias confiáveis. Já se tornaram
emblemáticos o episódio da fusão a frio, amplamente noticiado
pelos meios de comunicação em todo o mundo, e que se constitui
num espetáculo de promoção pessoal de pesquisadores em busca dos
holofotes da fama, e as insistentes descobertas de medicamentos
revolucionários (Prozac, Xenical, Viagra, etc.), "cases"
de marketing farmacêutico vendidos pela mídia como exemplos de
autêntica informação científica". (38)
Definitivamente,
vivemos um momento histórico. Empresas e países estão enfrentando
um novo conjunto de problemas: competição global crescente, deterioração
ambiental, fusão de mercados e a conseqüente necessidade de sobreviver
às difíceis situações que daí advêm e uma gama de outros problemas
econômicos, políticos e sociais.
Segundo
Dênis de Moraes, em artigo publicado no portal Sala de Prensa,
"os mastodontes da difusão movem-se pela Terra a partir de
um modelo de gestão que se vai firmando como paradigma universal,
e cuja voracidade por ganhos de capital não conhece qualquer limite.
Com alianças e fusões, a concorrência praticamente restringe-se
ao clube de players, dotados de fortes reservas de capital,
de know-how tecnológico e de capacidade de articular consórcios
transoceânicos. Essas inversões afastam ainda mais empresas de
menor porte das arenas competitivas e sedimentam uma industrialização
em torno de complexos empresariais. A palavra de ordem é otimizar
as performances do sistema produtivo, sobretudo a partir da convergência
de tecnologias e de reengenharias operacionais, para maximizar
vantagens e lucros... Concluímos que a mundialização das informações
e do entretenimento desenrola-se sob o signo da oligopolização
e da concentração multinacionalizada de suportes, mercadorias
e serviços apesar de os arautos da globalização insistirem
nos benefícios das novas e abundantes safras de produtos culturais.
À medida que essa configuração se cristaliza, reduz-se o campo
de manobra para um desenvolvimento equilibrado e estável dos sistemas,
meios e redes de comunicação, e agravam-se descompassos estruturais,
no contexto da desnacionalização de áreas estratégicas".
(39)
Certamente
um dos grandes desafios do jornalismo científico será, diante
do crescente monopólio da informação, ficar atento ao uso e sedução
através de discursos que imprimem no imaginário coletivo a crença
em um mundo mágico e sobrenatural. Como outrora observou o escritor
e cientista Carl Sagan, "a mágica requer cooperação tácita
entre o público e o mágico". (40) Segundo Sagan, é exatamente
isto que se tem de evitar.
Notas
1) Manuel Calvo HERNANDO, Teoria
e técnica do jornalismo científico, p. 15.
2) Vera Lúcia Salles de Oliveira
SANTOS, João Ribeiro como jornalista científico no Brasil (1895-1934),
p. 1
3) Wilson da Costa BUENO, Jornalismo
científico no Brasil: os compromissos de uma prática dependente,
p. 20.
4) Wilson da Costa BUENO, Jornalismo
científico no Brasil: aspectos teóricos e práticos, p. 24.
5) Roberto Pereira MEDEIROS, Ciência
e imprensa: a fusão a frio em jornais brasileiros, p. 58.
6) Manuel Calvo HERNANDO, Teoria
e técnica do jornalismo científico, p. 18.
7) Hillier KRIEGHBAUM, A ciência
e os meios de comunicação de massa, p. 22.
8) Ibid., p. 23.
9) Ibid., p. 41.
10) Osvaldo FROTA-PESSOA, José
Reis, o divulgador da ciência. In: Ciência e cultura, p.
2454.
11) José Marques de MELO, Quando
saúde é notícia, p. 21.
12) José Marques de MELO, Gêneros
opinativos no jornalismo brasileiro, p. 24.
13) Luciana Miranda SIMÕES, A
saúde na imprensa brasileira, p. 62.
14) Juan ALBERTO VERGA, El periodismo
científico en el desarrollo de los pueblos, p. 63.
15) Vera Lúcia Salles de Oliveira
SANTOS, João Ribeiro como jornalista científico no Brasil (1895-1934),
p. 9.
16) Mike MOORE, Health risks
and the press: perspectives on media coverage of risk assessment
and health, p. 111.
17) Stephen KLAIDMAN, Health
in the headlines - the stories behind the stories, p. 3-22.
18) Dorothy NELKIN, Selling
science: how the press covers science and technology, p. 217.
19) Aaron COHL, How pessimism,
paranoia and misguided media are leading towards disaster,
p. 104.
20) Luciana Miranda SIMÕES, A
saúde na imprensa brasileira, p. 78.
21) Marilena CHAUÍ, Convite
à filosofia, p. 278-279.
22 )Marilena CHAUÍ, Convite
à filosofia, p. 279.
23) IDEM, Cultura e democracia:
o discurso competente e outras falas, p. 7.
24) IDEM, Convite à filosofia,
p. 281.
25) Sérgio ADEODATO, O conceito
de jornalismo científico: teoria e prática, p. 6-7.
26) Ibid., p. 10.
27) Frijof CAPRA, O ponto de
mutação, p. 139.
28) Sérgio ADEODATO, O conceito
de jornalismo científico: teoria e prática, p. 28.
29) Ibid., p. 1-2.
30) Bernardo KUCINSKI, O jornalismo
e a cobertura de saúde, texto datilografado.
31) Wilson da Costa BUENO, Jornalismo
científico no Brasil: os compromissos de uma prática dependente,
p. 50.
32) José Marques de MELO, Quando
saúde é notícia, p. 19.
33) Bernardo KUCINSKI, Robert J.
LEDOGAR, Fome de lucros, p. 45.
34) Michel THIOLLENT, Comunicarte,
p. 126.
35) Wilson da Costa BUENO, Cadernos
de jornalismo científico, p. 5-9.
36) INSTITUTO GALLUP, O que
o brasileiro pensa da ciência e da tecnologia? (a imagem da ciência
e da tecnologia junto à população brasileira).
37) Wilson da Costa BUENO, Os novos
desafios do jornalismo científico (2002), http://www.comtexto.com.br
38) Ibid.
39) Dênis de MORAES, Comunicação
sob domínio dos conglomerados multimídias (2002), www.saladeprensa.org/art56.htm
40) Carl SAGAN, O mundo assombrado
pelos demônios, p. 173.
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Sérgio Bialski
Formado em Comunicação pela USP. É pós-graduado
em Gestão da Comunicação pela USP; em Jornalismo
Institucional pela PUC/SP; e em Comunicação Empresarial/Relações
Públicas pela Cásper Líbero. É Mestrando
em Ciências da Comunicação pela USP e Gerente
de Comunicação da Aventis Pharma.
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