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Alfabetização
e Cultura Científica: conceitos convergentes?
Marcelo Sabbatini*
Resumo
A partir da conceituação de alfabetização científica e de sua
utilização histórica como objetivo ideal tanto por parte da comunidade
dedicada à comunicação pública da ciência e da tecnologia como
da educação científica pelo setor da educação formal, analisa-se
o desenvolvimento deste conceito, relacionando-o com o emergente
conceito de cultura científica. O direcionamento do debate a esta
última concepção atende a uma reformulação que se produz paralelamente
tanto no campo das ações comunicativas como educativas, com o
traslado do foco nos elementos cognitivos (compreensão e explicação)
em direção à contextualização da ciência e da tecnologia na cultura
e nas atividades cotidianas, assim como à compreensão da natureza
da produção do conhecimento científico e dos impactos de sua aplicação
tecnológica. Em última instância, esta base cultural permitiria
uma participação verdadeira da sociedade em seu sentido mais amplo
no desenvolvimento científico-tecnológico, ao mesmo tempo em que
serviria como fundamento para a formação especializada em ciência
e tecnologia.
Palavras
chave: alfabetização científica, educação científica,
cultura científica
1.
Introdução
Na
atualidade muitos autores se preocupam com a existência de um
desequilíbrio entre o desenvolvimento da ciência e tecnologia
por uma parte, e da educação científica do cidadão por outra.
O chamado "analfabetismo científico" constitui um obstáculo
importante para a compreensão pública da ciência e da tecnologia
e o seu conceito antagônico, o de alfabetização científica, foi
utilizado como base para o modelo tradicional de comunicação pública
da ciência e da tecnologia. Este modelo tradicional, também chamado
de "modelo linear" ou "modelo de déficit"
supõe que a os distintos formatos da divulgação científica devem
preencher uma lacuna de conhecimento, informando e ensinando aos
não-especialistas, e que este novo entendimento levaria a uma
maior valorização da ciência e da tecnologia. Porém, ao mesmo
tempo em que este modelo tradicional se vê criticado e surgem
novas propostas, o conceito de alfabetização científica também
se vê questionado. E da mesma forma que na prática a divulgação
científica deve adotar um novo conjunto de estratégias e ações,
também na educação científica se proclama uma reforma.
Por
outro lado, analisar as raízes históricas da alfabetização científica
leva a compreensão do debate atual e das controvérsias associadas
a este conceito. Trata-se de um debate muito mais antigo a respeito
dos objetivos mais amplos da educação científica e os meios para
alcançá-la através da escolarização, iniciado em meados do século
XIX (CHUN et al., 1999).
O
lema "ciência para todos" surge de uma iniciativa da
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura (UNESCO) em 1983, representando uma nova abordagem
à alfabetização científica destinada ao público em geral. Embora
o movimento de "ciência para todos" tenha se aplicado
fundamentalmente ao setor do ensino obrigatório, também se pode
aplicar à educação adulta, terciária ou aberta (ROSS; SCANLON,
1999). A "ciência para todos", implica alcançar três
objetivos básicos: o crescimento pessoal e desenvolvimento contínuo,
o papel de um indivíduo como cidadão em uma sociedade democrática
e a preparação para as obrigações deste papel. Relacionado com
estes objetivos, encontra-se a necessidade do indivíduo de sustentar-se,
trabalhar e adquirir as habilidades básicas comuns a todas atividades
sociais (BYBEE, 1997).
Por
um lado, a aceleração das taxas de criação e difusão do conhecimento
implica umas mudanças de paradigmas relacionados com a força de
trabalho e com o sistema produtivo. A criação de novos ofícios,
tornando obsoletas as antigas profissões, a redução da força de
trabalho devido à utilização de processos tecnológicos substitutivos
da mão de obra tradicional e o traslado de profissionais a novos
setores de atuação implicam uma nova demanda de qualificação.
Em relação às mudanças comentadas, requerem-se, por exemplo, a
reciclagem de profissionais ligados às novas profissões, a re-qualificação
de profissionais para adaptá-los às inovações tecnológicas, a
necessidade de formação contínua, da auto-aprendizagem e do fomento
da capacidade de buscar a informação por si mesmos. Assim, também
a educação escolar deve reagir, fomentando o desenvolvimento de
hábitos e atitudes que auxiliem ao indivíduo em suas necessidades
informativa e formativa, com o objetivo último de consolidá-lo
como um cidadão funcional.
Na
prática, o analfabetismo científico se revela através da superstição
e do misticismo, das condições sanitárias inadequadas, da falta
de acesso a oportunidades de trabalho e crescimento profissional
e por outro lado, pelo escasso aproveitamento que os governos
fazem do conhecimento científico para a resolução de problemas
produtivos e sociais e para a utilização dos recursos naturais
através de esquemas de desenvolvimento sustentável (Padilla, 2001).
2.
O conceito de alfabetização científica
Para
abordar o tema da alfabetização científica, portanto, é necessário
definir em primeiro lugar o conceito de alfabetização. Face às
diferenças entre as propostas teóricas, a alfabetização pode definir-se
como o nível mínimo de habilidades de leitura e escritura
que um indivíduo deve ter para participar da comunicação escrita.
Este conceito se apresenta como uma dicotomia, justamente por
que define uma medida limite que separa dois estados. A definição
deste valor limite é subjetiva, mas há um consenso a respeito
das habilidades, por general situadas em um mesmo domínio do saber,
e dos conhecimentos necessários para estabelecer uma funcionalidade
mínima. Também é importante comentar o conceito de alfabetização
funcional, definida como o conjunto de habilidades mínimas necessárias
para que o cidadão opere na sociedade contemporânea. Cabe notar
que qualquer definição de alfabetização é inerentemente associada
à sociedade que a utiliza, devido à diversidade de sistemas sociais
e econômicos existentes no mundo (MILLER, 2000a).
Desta
maneira, a alfabetização científica se define como o nível mínimo
de compreensão em ciência e tecnologia que as pessoas devem ter
para operar nível básico como cidadãos e consumidores na sociedade
tecnológica. Segundo a proposta de Miller (2000b), o conceito
de alfabetização científica implica três dimensões. A primeira
consiste de um vocabulário básico de conceitos científicos,
suficiente para que possa ser percebida a existência de visões
contrapostas em um uma notícia de jornal ou artigo em revista.
Trataria-se de um "vocabulário científico mínimo", incluindo
termos básicos como "átomo", "molécula", "célula",
"gene", "gravidade", "radiação".
Em segundo lugar, uma compreensão da natureza do método científico,
permitindo a distinção entre ciência e pseudociência e o acompanhamento
de controvérsias científicas. E por último, uma compreensão
sobre o impacto da ciência e a tecnologia sobre os indivíduos
e sobre a sociedade. Este terceiro ponto varia grandemente entre
países e para a realização de comparações em estudos internacionais
se utiliza uma abordagem bidimensional ao conceito, utilizando
somente as duas primeiras dimensões. A obtenção de um nível razoável
em cada uma destas três dimensões proporcionaria um nível de competência
suficiente para a compreensão e seguimento de temas relacionados
com a ciência e a tecnologia nos meios de comunicação (MILLER,
2000a).
Já
outra dimensão adicional, menos explorada, é a existência de uma
atitude científica, definida como uma boa disposição para
mudar de opinião com base em novas provas, a busca da verdade
sem prejuízos, o entendimento das relações de causa-efeito e a
predisposição de adquirir um hábito de somente realizar julgamentos
a partir de feitos concretos.
O
conceito de alfabetização científica, proposto pela American
Association for the Advancement of Science (AAAS), inclui
as habilidades para familiarizar-se com o mundo natural e reconhecer
sua diversidade e sua unidade; de entender os conceitos fundamentais
e os princípios científicos; de perceber a inter-relação entre
a matemática, a ciência e a tecnologia; de assumir que estas são
empresas humanas, o que também implica ter limitações; de adquirir
a capacidade de pensar segundo o exigido pelo rigor científico
e de utilizar o conhecimento científico com propósitos individuais
e sociais. Para alcançar estes objetivos, a ciência deve abrir-se
ao público, e para que isto aconteça, algumas condições básicas
são necessárias: a educação durante toda a vida ou "lifelong
learning", o aumento de oportunidades de participação
em questões científicas e tecnológicas, uma educação apropriada
em ciências e o acesso conveniente e inteligível ao mundo da ciência
(RUTHERFORD, 2003).
Pese
a existência de múltiplas definições, com variações históricas
do conceito, a noção clássica de alfabetização científica está
relacionada com a questão de compreender conceitos e princípios
científicos, em outras palavras, com uma questão cognitiva. Na
prática esta abordagem vê-se refletida na construção de indicadores
de percepção pública da ciência e da tecnologia, que tem como
objetivo sondar o estado da opinião pública em quanto ao interesse,
conhecimento e atitudes frente a estas atividades, e conseqüentemente,
com as políticas públicas neste setor. Este tipo de pesquisa se
utiliza, portanto, para a medição de indicadores das atitudes
dos membros da sociedade ante o financiamento público da ciência
e a confiança na comunidade científica, além da percepção dos
riscos e benefícios associados à ciência e à técnica. A National
Science Foundation (NSF), nos Estados Unidos, consolidou
uma base metodológica, utilizada na atualidade por outros países
utilizando justamente esta conceituação da alfabetização científica.
Dos
estudos realizados nos Estados Unidos, combinando os dois primeiros
critérios de alfabetização científica mencionados (vocabulário
básico e compreensão da natureza da ciência) destaca um alto defase
entre o nível de interesse demonstrado em ciência e tecnologia
e o baixo nível de informação possuído, um resultado que se mantém
durante mais de duas décadas consecutivas. Esta polarização também
se observa em outros estudos, que utilizam a mesma base metodológica,
por exemplo, os chamados "Eurobarômetros" na União Européia.
Outro dado importante é que ambos continentes existe uma percepção
positiva dos resultados da ciência, por exemplo, fazendo do mundo
um lugar melhor e melhorando a qualidade de vida, ainda que existam
diferenças profundas frente à utilização de tecnologias específicas,
como a energia nuclear e a engenharia genética. Por outro lado,
os estudos sobre a percepção pública da ciência e da tecnologia
se situam em uma área de estudos empíricos, enquanto que a reflexão
teórica a respeito de sua validez metodológica, a análise dos
resultados e implicações para a formulação de políticas científico-tecnológicas
tiveram um crescimento menor.
O
conceito de alfabetização científica possui, porém, outras perspectivas.
Para Bybee (1997), a partir de uma perspectiva de eslogan, ou
seja, do uso repetido sem uma clarificação do sentido, um termo
serve como símbolo para a transmissão das idéias e atitudes chave
dos movimentos educativos e para a geração um espírito de comunidade.
Portanto, como eslogan, a alfabetização científica está associada
a um valor positivo, identificando-a com uma reforma contemporânea,
e unindo aos educadores através de uma declaração única que expresse
os objetivos da educação científica.
Em
segundo lugar, a alfabetização científica entendida como metáfora
procura expressar os objetivos da educação científica, transformando
o sentido da alfabetização e adotando um sentido implícito mais
além do sentido estrito do término (saber ler e escrever) que
faz referência a uma declaração teórica e aos componentes fundamentais
do que se pretende obter com a educação científica. A metáfora
também provê um modo de pensar em como alcançar uma educação científica
eficaz comparando-se, por exemplo, a uma imersão em uma cultura,
freqüentemente utilizada na aprendizagem de idiomas: com a imersão
dos estudantes em questões e processos autênticos da ciência e
problemas reais frente à memorização de um vocabulário científico.
Esta imersão também sugere um objetivo para os estudantes, fixando
padrões de realização. Por exemplo, aprender algo mais que um
vocabulário básico.
Mas
segundo Shamos (1988) a alfabetização científica é um desafio
inalcançável. O ponto chave da questão está no fato de que a maioria
das pessoas pode viver na sociedade virtualmente ignorando a ciência
e a técnica, ao mesmo tempo em que desfrutam de todo seu conforto,
de forma que a sociedade se isolou da necessidade de saber ou
compreender a origem destes avanços. Além disso, a discussão teria
fracassado ao não especificar como a sociedade vai se beneficiar
de um maior conhecimento da ciência, em comparação com qualquer
outra disciplina possível, além de não especificar padrões quanto
aos objetivos e os modos de alcançá-los.
E
o argumento de que a alfabetização científica é necessária para
a participação ativa em questões e decisões relacionadas com a
ciência e a técnica ignora a realidade de que a carga de conhecimentos
necessária para que se alcancem julgamentos independentes se encontra
além da capacidade dos cientistas mesmos. Por outro lado, as controvérsias
científico-tecnológicas possuem fortes ingredientes emocionais
que levam à distorção de juízos, independentemente do grau de
alfabetização científica do indivíduo, dado que as emoções entram
em conflito com crenças pessoais, políticas ou religiosas.
3.
O conceito de cultura científica
Na
atualidade, surgem outras propostas, e mais que alfabetização
científica, propõe-se falar do nível de "cientificidade"
da cultura de uma sociedade, quer dizer, em que medida as instituições
científicas, seus conteúdos, práticas, processos e discursos se
encontram refletidos na sociedade como um todo. A concepção da
alfabetização científica como um atributo individual se revela
insuficiente para compreender a circulação e uso social do conhecimento,
assim como a participação cidadã. Uma vez assumido que a ciência
e a tecnologia são partes da sociedade, é necessário um maior
nível de integração destes conceitos para converter a denominada
"cultura científica" em conteúdos manifestos nas práticas
gerais e presentes no sentido comum. Os critérios para o desenvolvimento
deste nível de cientificidade são portanto: o nível de aplicação
de práticas científicas em atividades relevantes, o grau de informação
circulante de forma pública, o grau de desenvolvimento da cultura
ciência-tecnologia-sociedade e o grau de participação cidadã nas
controvérsias de caráter científico-tecnológico (POLINO; FAZIO;
VACAREZZA, 2003).
Por
outro lado, na atualidade também é comum a utilização do termo
"cultura científica" como elemento objetivo da comunicação
pública da ciência. O termo também se apóia em uma proposta de
consideração da ciência como parte da cultura geral. A separação
entre ciência e cultura é iniciada com a profissionalização da
ciência no século XIX, mas alcança seu auge com o trabalho de
Snow (1959), que identifica a existência de duas culturas, uma
científica e outra humanista, dentro da comunidade acadêmica.
A divisão de culturas afetaria e caracterizaria, assim, as concepções
mesmas de construção e disseminação do conhecimento.
Para
Snow, a transferência do paradigma das duas culturas a partir
do contexto acadêmico para o não acadêmico incide diretamente
sobre a questão da alfabetização científica, já que a especialização
precoce no sistema educativo cria a necessidade de "intérpretes"
para mediar as mensagens especializadas da ciência.
Mas
a partir dos setenta surge uma "terceira cultura", integrada
pelos estudos sociais da ciência e a tecnologia e pelo reconhecimento
de valores humanísticos na ciência. Na atualidade, esta multiculturalidade
também provém da manifestação dos campos híbridos de investigação,
que não se podem categorizar segundo extremos bipolares, mas sim
constituem campos heterogêneos de disciplinas. Surge então uma
proposta pós-moderna, para a prática de uma comunicação científica
"(multi)cultural", que tem em conta a diversidade cultural
nas comunidades acadêmicas e científicas (VAN DIJCK, 2002).
A
influência da ciência na cultura pode ser detectada através de
sua influência sobre o pensamento cotidiano, da utilização dos
conhecimentos científicos para a resolução de problemas práticos
e da capacidade da ciência para melhorar a toma de decisões pessoais.
Ainda assim, esta relação não está tão clara, devido a que tradicionalmente
o sistema técnico-científico foi considerado fechado em si mesmo
em relação à sociedade, ao mesmo tempo em que uma alfabetização
científica deficiente faz que a ciência seja percebida como algo
pouco relevante para a vida cotidiana (MASSANERO et al., 2002).
Ao
examinar a relação da ciência com outras formas de conhecimento,
Fernández-Rañada (2002) chega à conclusão de que a "ciência
se gera socialmente, de modo que é influenciada pela cultura e
nela influi, tendo sua ação mais pontos em comum com outras abordagens
à realidade, como as humanidades e a arte, do que se pode supor"
e apesar de seus condicionamentos culturais o saber científico
chega a "afirmações objetivas, ou seja, supra-culturais,
válidas em qualquer ambiente cultural ou ideológico". Surge
então o conceito de cultura científica:
Mas
o que é realmente a cultura científica? A resposta a esta
pergunta não é simples; como não o é a resposta à pergunta
a respeito do que é a cultura artística ou literária. Uma
pessoa culta tanto faz seja em artes, literatura ou
ciências- não é o erudito, que sabe quase tudo, nem o pesquisador,
que indaga na profundidade de determinados temas. É muito
mais aquele que pode compartilhar com outras pessoas uns determinados
conhecimentos básicos, históricos, conceituais, generalistas...que
lhe ajudam a compreender melhor e a apreciar mais o mundo
que lhe rodeia (TOHARIA, 2001).
Do
mesmo modo,
A
expressão cultura científica tem a vantagem de englobar tudo
isso [alfabetização científica, divulgação científica, percepção/compreensão
da ciência] e conter ainda, em seu campo de significações,
a idéia de que o processo que envolve o desenvolvimento científico
é um processo cultural, quer seja ele considerado do ponto
de vista de sua produção, de sua difusão entre pares ou na
dinâmica social do ensino e da educação, ou ainda do ponto
de vista de sua divulgação na sociedade, como um todo, para
o estabelecimento das relações críticas necessárias entre
o cidadão e os valores culturais, de seu tempo e de sua história.
(VOGT, 2003).
4.
Alfabetização científica e educação em ciências
Uma
das principais formas de alcançar a alfabetização científica é
através da educação científica. Roqueplò (1974) analisa a relação
entre divulgação científica, realizada principalmente através
do jornalismo científico, mas podendo assumir outras formas como
os museus e centros interativos de ciência, e o ensino formal.
Assim, a primeira relação é de complementaridade. Sua principal
justificação é a acelerada especialização do conhecimento frente
à lentidão dos programas escolares em relação com o ritmo da ciência
e de incorporar seus conteúdos. Neste panorama a divulgação surge
como um meio mais flexível, permitindo assegurar uma cultura geral
que acompanha o progresso das ciências. A segunda relação é a
de dependência direta, com o estabelecimento de uma brecha
de conhecimento entre vários setores da sociedade. Pese ao conhecimento
mínimo assegurado pelo ensino escolar, a contribuição da divulgação
é acessível somente aos que têm conhecimento suficiente para alcançar
um benefício. Por isso também existe o risco de que a divulgação
científica se dirija às elites, acentuando as desigualdades do
ensino oficial.
Entretanto,
como elemento comum, a idéia básica do movimento em pró da alfabetização-cultura-apreciação
científica é o conceito de una "uma nova forma de ensinar
que rompa, em particular, com a visão de uma ciência descontextualizada,
alheia aos interesses e condições sociais" (BYBEE, 1997),
de forma bastante similar ao que o movimento da compreensão pública
da ciência e a tecnologia postula na atualidade. Para Trefil (1996),
a alfabetização científica é um subconjunto de algo muito mais
geral, denominado alfabetização cultural. Assim, quase todas questões
científicas não tratam da ciência isoladamente, mas sim demandam
um conhecimento sobre temas como economia e política, por exemplo.
Na
atualidade, as limitações da educação de ciências se podem resumir
na incompreensão da ciência devido à ausência de um sentido humanístico,
que ajudaria no conhecimento de sua natureza, dos pontos fortes
e limitações da pesquisa científica e da percepção da ciência
como uma complexa atividade social, com dimensões filosóficas,
sociais e éticas. Também se encontra ausente o tratamento a partir
de uma perspectiva histórica, com o retrato dos episódios com
transcendência para o patrimônio cultural, dos marcos do desenvolvimento
do pensamento no mundo ocidental.
Por
último, o ensino das ciências se caracteriza por uma imperfeição
na hora de lidar com idéias e conceitos especializados que transcendam
os limites disciplinares, como por exemplo, os conceitos de "constância"
e "mudança", de "sistemas", "modelos"
e "escala". Associada a esta abordagem, a concepção
das disciplinas científicas como inerentemente difíceis e ausentes
de relevância pessoal ou social em termos de participação pública.
Este "alto nível" atribuído à ciência tem um custo substancial,
pois implica a idéia de que a ciência "é para os outros",
quer dizer, para uma minoria dotada de capacidades científicas
e técnicas (RUTHERFORD, 2003).
Para
efetuar uma mudança neste panorama educativo é necessário adotar
propostas curriculares diferenciadas, que especifiquem os objetivos
de aprendizagem claramente e que capacitem para a participação
no mundo da ciência, para toda vida. Os conteúdos dos cursos deveriam
refletir tanto os aspectos técnicos como as dimensões humanas
da ciência; estes conteúdos devem acompanhar-se de materiais educativos
que tratem as ramificações de maneira transversal e não só em
capítulos superficiais ou anexos que possam facilmente ser ignorados.
Um
possível currículo para promover a apreciação da ciência incluiria
a compreensão dos objetivos da ciência e da tecnologia, dos motivos
pelos quais ambos são necessários, do papel da teoria na ciência,
do significado dos fatos" e das "verdades científicas",
do papel da experimentação em ciência, da relação complementar
entre a ciência e da tecnologia, da história da ciência e de sua
natureza acumulativa, dos potenciais e limitações no horizonte
da ciência, da ameaça dos movimentos pseudo e anticientíficos
e por fim, do impacto social que a ciência e a técnica ocasionam
na sociedade (SHAMOS, 1995).
Em
último lugar, a avaliação do estudante deve vincular-se estreitamente
com os objetivos da aprendizagem, para que o processo de mudança
seja efetivo. Além disso, a menos que os professores se comprometam
profundamente em promover a alfabetização científica a todos os
estudantes, estes objetivos não vão ser levados a sério. É mais,
sem os conhecimentos e habilidades necessárias para efetuar estes
novos objetivos e estratégias, o professorado não será capaz de
operar eficazmente nos cursos. Sua formação e capacitação devem
ter a mesma base pedagógica que os estudantes, para uma compreensão
ampla da ciência como empresa social e humana, e esta deve manter-se
ao longo da carreira profissional.
Em
contrapartida, o conceito de cultura científica determina um posicionamento
específico, assumindo a noção de conhecimento científico generalizado
na população, não mais a partir de uma base de medição da compreensão
de conceitos, em outras palavras, do "nível de alfabetização
científica, mas sim de um "modo de entrelaçar" a ciência
que as crianças aprendem na escola a seus modos cotidianos de
reagir, pensar, emocionar-se e atuar, que poderia incorporar-se
em seu pensamento familiar, tanto como o íntimo vocabulário da
cultura (SOLOMON, 1997).
Uma
justificativa algo distinta é a aprendizagem das ciências pelo
bem individual, dada as relações entre ciência e cultura. Conhecer
as ciências, portanto, implicaria a possibilidade de uma participação
cultural (MASSEY, 1999).
Assim,
a apreciação da ciência, no sentido de perceber a ciência como
algo "interessante, estimulante e entretido" constitui
um objetivo mais realista do que de equiparar o conhecimento dos
não-especialistas com o dos cientistas. Segundo Shamos (1988),
em uma cidadania que compreenda e aprecie o que é a ciência é
menos provável que se desenvolvam atitudes anticientíficas, que
em uma que se viu forçada a aprender ciência.
E
frente à impossibilidade de que a educação científica permita
que os cidadãos julguem com critérios técnicos, em outras palavras
que se equiparem ao peritos, a educação de ciências deveria procurar,
como mínimo, reduzir o medo associado às questões científicas
e técnicas e a falta de confiança em compreender princípios básicos
(MASSEY, 1999).
Por
último, entre as características de uma pessoa educada se encontram
o desejo e a habilidade de continuar aprendendo uma vez afastada
do sistema formal. Entre os atributos que se mencionam para alcançar
este nível de "lifelong learning", destacam a
curiosidade (o desejo de compreender fenômenos e de saber
mais sobre as coisas) atuando como força condutora; a confiança,
ou habilidade de aprender coisas novas e a discriminação,
pois a curiosidade sem um foco de atenção pode conduzir ao esforço
de dominar temas irrelevantes ou errôneos, levando a dissipação
de energia mental e física. Estas são justamente as características
que emergem do estudo das ciências, pois entendida como processo,
e não só como corpo de conhecimento, demanda e alimenta estes
valores (MASSEY, 1999).
Em
suma,
Mais
além do enfrentamento, parece hoje fora de toda dúvida não
só a influência da cultura na ciência, mas também que a própria
ciência é uma forma mais de cultura, feita por pessoas e para
a humanidade, embora possivelmente uma cultura algo especial
(
) Sem chegar a pensar ingenuamente que as barreiras
entre as duas culturas desapareceram, hoje em dia se tende
mais a reconhecer, de ambos lados, que a ciência é parte inerente
e medular da cultura humana, por isso resulta urgente seguir
trabalhando pela comunicação da ciência à sociedade para incrementar
sua compreensão pública e melhorar a alfabetização científica
de toda a cidadania (MASSANERO et al., 2002).
Conclusão
Neste
artigo analisamos o conceito de alfabetização científica a partir
de suas múltiplas definições e de sua relação com os processos
de comunicação pública da ciência e da tecnologia e da educação
em ciências. Neste sentido notamos que apesar de ter objetivos
comuns, e além do conceito central compartido, existe uma separação
entre a literatura científica e crítica na área da educação de
ciências e na área de comunicação social, incluído o jornalismo
científico e outras formas de divulgação.
O
recentemente adotado conceito de cultura científica, apesar da
falta de uma definição suficientemente consolidada e teóricamente
fundamentada, aparece como um possível elemento de reunificação
entre estas diferentes áreas de estudo e também de sua aplicação
prática. Mais importante, parece dirigir o debate, desde uma noção
da alfabetização centrada nos elementos cognitivos, quer dizer,
na compreensão e explicação, a uma concepção de contextualização
do saber científico nas atividades cotidianas, complementada por
uma compreensão da dinâmica social da produção do conhecimento,
assim como das repercussões de sua aplicação tecnológica. Finalmente,
tamnbém cabe dizer que o conceito de cultura científica, apesar
de certa semelhança e de esta sinalizada convergência conceitual,
é mais amplo do que conceito de alfabetização científica, na medida
em que incorpora um componente social de análise e interpretação
ao processo de apropriação do conhecimento, frente ao caráter
essencialmente individual (e a partir do qual se realizariam infererências
para toda a sociedade) da concepção tradicional.
Através
de estratégias de comunicação social e de ações pedagógicas que
busquem esta noção de alfabetização científica, muito mais centrada
na apreciação se chegaria à incorporação do saber científico tanto
ao imaginário social do indivíduo, assim como da sociedade circundante.
Posteriormente,
com esta base de entendimento da ciência e da tecnologia como
processos integrantes e presentes na cultura, iniciariam-se as
ações de formação especializada de técnicos e cientistas, cuja
atividade futura também seria afetada pela percepção da sociedade
com um todo, em um processo contínuo de negociação e influência
mútua.
Em
última instância, esta concepção da cultura científica em sentido
amplo propõe-se como a única forma possível para permitir uma
participação efetiva da sociedade em um quadro democrático e desta
forma orientar o desenvolvimento econômico de um país ou região.
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VAN DIJCK, José. After the "two
cultures": towards a "(multi)cultural" practice
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Conference on the Public Communication of Science and Technology,
2002.
VOGT, Carlos. A espiral da cultura
científica. Comciência, Especial Cultura Científica, julho
de 2003.
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Marcelo Sabbatini
Engenheiro químico formado pela Universidade Estadual
de Campinas, Brasil (1997), doutor em Teoria e História
da Educação pela Universidad de Salamanca (2004),
Espanha. Mestre em Comunicação Social pela Universidade
Metodista de São Paulo, modalidade comunicação
científica e tecnológica (2000). Especialista (máster)
em ciência, tecnologia e sociedade (CTS): cultura e comunicação
em ciência e tecnologia, também pela Universidad
de Salamanca (1999).
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