Carlos Alberto Bissogno*
A busca por entender
a realidade íntima das coisas elevou a humanidade
dando-lhe a curiosidade. Na tentativa de sistematizar o
conhecimento que a supriria, surgiu a ciência. Com
a finalidade de divulgar este conhecimento, à medida
que ele nascesse, e torná-lo acessível e atraente,
nasceu o jornalismo científico. No entanto, a cada
dia, ele vem se tornando mais abundante e psicodélico.
Verborrágico, praticamente substituiu as escolas
e universidades como a principal fonte de informação
para o grande público e para atingi-lo, tem distorcido
seriamente os princípios científicos. Assim,
ao apresentar, sem restrições, pseudociência
como se fosse ciência genuína - paradoxal e
tortuosamente - ele apresenta a ciência austera, criteriosa,
como construção severamente desumana. A imprensa
tem afastado este público da essência da formação
do conhecimento e seu real fascínio.
Mas por que a ciência estaria correndo perigo? A curiosidade
é indolente e se apega facilmente a comodidades tolas.
Por fim, o que a motivou em princípio, pode acabar
por desencadear seu fim. Há uma invasão maciça
de embustes científicos nas mídias tradicionais
e principalmente na Internet que deslumbram a curiosidade.
A ironia é que isso está acontecendo à
medida que se estabelece uma sucessão extraordinária
de progressos tecnológicos e científicos como
nunca houve na história da humanidade. Parece ainda
incompreensível que alguém que trabalhe diariamente
com um dos mais complexos equipamentos já criados,
o computador, derivado da aplicação de um
volume gigantesco de descobertas da física, química
e da matemática, acumuladas ao longo de muitos séculos,
seja a mesma pessoa que acredita em astrologia, duendes,
homeopatia, anjos, criacionismo e outras sandices do gênero.
Parece que os objetos se tornaram tão intricados
que se igualaram a magia aos olhos de todos -, analfabetos
científicos.
Há também divulgadores científicos
e professores, que se julgando senhores de toda a verdade,
ignoram que a própria ciência pouco a pouco
se descobre menos "científica" do que se
pensava. Desconhecem que ela é mais compassiva a
se aproximar dos afetos humanos do que se imaginaria. Propagam
o mito de uma ciência fria, intimidando talentos,
e se fechando, bloqueados de inspirar paixões voltadas
a ela.
Há a necessidade de uma reconstituição
- melhor dizendo -, de uma reconstrução da
idéia de ciência e que seu conceito "moderno",
que está vinculado ao projeto iluminista de ordem,
controle e síntese, assumido impetuosamente pela
tecnologia, seja substituído de forma responsável
por uma percepção de prudência, coerência
e plausibilidade. Na modernidade, em especial na Revolução
Científica dos séculos 18 e 19, a procura
por explicações sobre a natureza e a vida
tornou-se a mola propulsora da sociedade. E foi justamente
para atender as expectativas de uma sociedade sedenta por
ter notícia desses avanços que surgiu o jornalista
científico arrogando para si o direito (e o dever)
de transformar conhecimento científico e tecnológico
em informação de compreensão popular.
Todos reconhecem que por meio de seus rituais de descoberta,
a ciência prolongou a vida, venceu doenças
e ofereceu novas liberdades sexuais e comerciais. Derrubou
deuses e revelou um cosmos mais complexo e espantoso do
que qualquer coisa produzida pela imaginação.
Mas apesar de toda sabedoria acumulada até hoje,
a ciência ainda não conseguiu respostas para
questões fundamentais, como a razão da existência
do Universo e da própria vida. O fracasso das pretensões
que o cientificismo tinha de respondê-las abre espaço
para o retorno do sobrenatural na compreensão da
realidade. Isso está acontecendo de forma significativa,
e infelizmente os jornalistas e editores não hesitam
em comprometer sua própria integridade e a de seus
órgãos de comunicação ao fazerem
reportagens constantes com "alternativos" e "esotéricos",
dando credibilidade a estes por meio de uma linguagem sensacionalista
e acrítica. Ninguém tem nada contra entretenimento
e fantasia, mas a mídia deveria ser mais responsável
e íntegra, marcando claramente o que é ciência
e o que é crença.
Alguns cientistas devem se perguntar, atônitos, diante
do vigor cada vez maior das religiões fundamentalistas
em todo o mundo, se as velhas certezas terminaram por ocupar
o vácuo criado pela falta de conclusões científicas
quanto às grandes questões da vida cotidiana.
A ciência não é muito reconfortante
em momentos de morte -, imaginam.
O ser humano acredita já ter descoberto o que podia
sobre os principais mistérios da natureza, como a
origem do Universo no Big Bang, as propriedades da matéria
e da energia determinadas pela mecânica quântica,
os fundamentos do espaço e do tempo explicados pela
relatividade e o desenvolvimento da vida, elucidado pelo
código genético e pela teoria da evolução
de Darwin. Reduz-se tudo a idéias mortas incapazes
de obter um desenvolvimento para além do já
conseguido. Todos se voltam à vida prática
e se perguntam apenas como a ciência e o conhecimento
já adquirido podem resolver seus problemas imediatos.
Assim surge o empenho enfático no desenvolvimento
da tecnologia, e as prioridades de pesquisa se tornam cada
vez mais politizadas e demagógicas.
Mediador entre a ciência e a sociedade, o jornalismo
científico foi definido como o porta-voz da fronteira
do conhecimento humano. Seu objetivo era popularizar a ciência,
atendendo às necessidades do cidadão de compreender
como e por que as descobertas científicas e tecnológicas
o afetam. Porém muita coisa mudou. Sentimos os efeitos
devastadores das duas grandes guerras, da poluição,
do aquecimento global, do buraco na camada de ozônio,
da urbanização desordenada, entre outros mais
que revelaram uma face do progresso científico que
o homem não queria ver. Problemas pragmáticos
sérios ainda não foram solucionados, como
o câncer e a AIDS que continuam a obscurecer muitas
vidas. Dificuldades como estas ajudaram a alimentar o desencanto
da sociedade com a ciência. A tensão entre
a ciência e o público, iniciada nos anos 60
com o movimento ambientalista, criou novas barreiras à
pesquisa que hoje pleiteia empregar células-tronco
e clonagem humana "para o bem da humanidade".
Não temos mais a mesma impressão otimista
e triunfalista criada pela ciência moderna. Além
disso, o próprio método científico
moderno, inquestionável até então,
entrou em xeque após a ascensão da física
quântica, das descobertas da teoria geral da relatividade
e da entropia. As ciências físicas parecem
ter perdido uma linha narrativa que no passado lhes era
favorável e estão ligeiramente à deriva,
perdendo contato com a realidade, entrando no âmbito
da fantasia e da imaginação pura, abstrata,
com suas novas dimensões e supercordas.
Estudos de intelectuais como Jean François-Lyotard,
Gaston Bachelard e Thomas Kuhn parecem concordar em um mesmo
ponto: a queda do véu de infalibilidade científica
cria a convicção de que o conceito de ciência,
bem como seus métodos, dependem em grande parte das
mudanças sociais e ideológicas de sua época.
Dessa forma, a ciência torna-se mais aberta para aceitar
a história e a filosofia como critérios válidos
para a compreensão da realidade.
Não é de se espantar, portanto, que quando
a noção de ciência muda, muda também
a maneira de se divulgar a ciência. Na verdade, o
jornalista científico acaba ficando preso a sua época
- e hoje, tudo é mercadoria. As revistas de divulgação
científica brasileiras, como maiores representantes
da popularização do conhecimento científico
no país, não ficam atrás e também
apresentam claramente os efeitos da chamada "crise
da ciência" em suas pautas e linha editorial
voltadas especificamente a atender ao mercado, esquecendo
aos poucos seu compromisso social de fonte elucidativa que
fala mesmo o que não se quer ouvir.
Definir precisamente com palavras o rumo da ciência
e, por conseguinte, do jornalismo científico parece-nos
uma tarefa tão difícil quanto, usando os métodos
e equações probabilísticas da física
quântica, determinar sua trajetória histórica.
Afinal de contas, se o próprio conhecimento científico
está tão fragilizado e incerto em sua realidade,
o que se pode exigir dos jornalistas científicos?
À medida que o mundo avança por um século
nascido em meio à disputas pelo petróleo,
a um clima político divisivo e a desafios cada vez
mais sofisticados à vida, parece justo fazer uma
pergunta que vai de encontro a séculos de pensamento
ocidental. A ciência ainda será capaz de nos
dar as respostas que queremos?
Se até então não encontramos resposta,
ao menos há o alento da prosa realisticamente perturbadora
de Jorge Luiz Borges (EL HACEDOR, 1952):
"Um homem propõe-se a tarefa de desenhar o mundo.
Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de
províncias, de reinos, de montanhas, de baías,
de naves, de ilhas, de peixes, de habitação,
de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco
antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de
linhas traça a imagem de seu rosto".
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*Carlos Alberto Bissogno é professor Graduado em
Ciências Naturais e suas Técnologias/Licenciado
em Física pelo Centro Federal de Educação
Tecnológica de Campos (CEFET-Campos, RJ).
Blog: Ciências,
Tecnologia e Sociedade
E-mail: c.albertobissogno@gmail.com