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A contribuição do Jornalismo Científico ao desenvolvimento científico brasileiro

Marcelo Leite*

      Não é tarefa trivial responder à questão sobre qual seria o papel ou a contribuição do jornalismo científico no desenvolvimento científico e tecnológico do Brasil, ou de qualquer outro país. Certamente ele tem um papel a desempenhar, mas é duvidoso que se restrinja a difundir e educar, como em geral se tende a pensar. Talvez seja de valia tentar rastrear essa contribuição possível a partir de sua relação com um problema real e presente, como o da dificuldade crônica da pesquisa brasileira em efetivar-se como inovação tecnológica, em transitar da esfera dos artigos científicos, em que o país tem melhorado significativamente seu desempenho, para o mundo da produção e da produtividade –para não falar da exportação e da competitividade. Seria esse um problema também de comunicação, teria a imprensa não-especializada uma contribuição a dar na superação desse fosso?
      Segundo dados do Livro Verde do MCT, o Brasil ocupa o 17o lugar no mundo em número de trabalhos científicos aceitos por publicações indexadas, com 12.333 artigos no ano 2000 (dados do Institute for Scientific Information-ISI). Isso representa um acréscimo de mais de 400% em relação a 1981, contra uma média de crescimento mundial da ordem de 90%. No que respeita a patentes, porém, o desempenho brasileiro é alarmantemente acanhado, sobretudo se comparado com a crescente superioridade da Coréia do Sul: apenas 113 patentes registradas no Escritório de Patentes e Marcas dos Estados Unidos em 2000, contra 3.472 do país asiático, ainda segundo o Livro Verde. Não é o caso aqui de arriscar uma interpretação diagnóstica sobre esse estado de coisas, que cabe a especialistas mais qualificados empreender, mas parece haver consenso entre atores da política científica brasileira que ele tem relação direta com a reduzida fatia de investimentos do setor privado no financiamento de atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) por aqui, da ordem de 37%. O fato é que continua a inexistir uma ponte, ou algo como uma correia de transmissão, entre o mundo da pesquisa, basicamente estatal (seja do ponto de vista institucional, seja do ângulo do financiamento), e o mundo empresarial.
      Constituiria rematada ingenuidade, no entanto, pretender que essa incomunicação decorra da falta ou da má qualidade de reportagens sobre ciência nos jornais e revistas brasileiros. Em primeiro lugar, porque a quantidade está longe de ser pequena. Segundo levantamento efetuado pelos pesquisadores Luisa Massarani, Isabel Magalhães e Ildeu de Castro Moreira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, só de junho de 2000 a maio de 2001, e unicamente sobre temas relacionados com genética, os seis maiores diários do país publicaram 751 textos sobre esses assuntos. Ou seja, a média de um texto sobre genética em cada jornal a cada três dias. Essa quantidade é facilmente explicável pela publicação de pesquisas de importância histórica, como o Genoma Humano e o Genoma da Xylella (os quais, segundo o levantamento, representaram 78% das reportagens publicadas na imprensa diária nesse período), mas nem por isso fica diminuído o mérito dos jornalistas de ciência do país de saber identificar e refletir adequadamente a importância desses trabalhos. Sobre a qualidade é mais difícil para um editor militante opinar, por ser parte interessada, mas as reações colhidas de pesquisadores e a comparação com a produção jornalística de alguns dos principais órgãos de imprensa do mundo sugere que o desempenho pode ser considerado mais que razoável, para um país em desenvolvimento.
      Alguém poderia então argumentar que ao menos parte desse distanciamento entre institutos de pesquisa e empresas seja produto da relativamente pequena participação de pesquisas brasileiras na pauta das reportagens publicadas pelos jornais nacionais (da ordem de 41%, segundo o levantamento já citado dos pesquisadores da UFRJ). Ou, então, que essas reportagens se limitam, na maior parte dos casos, a destacar aspectos interessantes e/ou curiosos das pesquisas, e não aquilo que pudesse indicar aplicações ou utilidades potenciais para empresários sequiosos de inovação. Com efeitos, essas são duas críticas freqüentes que os pesquisadores dirigem ao jornalismo científico brasileiro, e elas contêm um incômodo fundo de verdade. Tão ingênuo quanto ignorá-las, no entanto, seria acreditar que as deficiências nelas apontadas tenham a capacidade de oferecer alguma explicação causal para a falta de articulação entre os setores de produção de bens materiais e de produção de conhecimento. Esta deve ter razões orgânicas mais profundas na própria esfera da economia e das instituições, que caberia a outros especialistas identificar.
      Por outro lado, se parece evidente que um jornalismo científico mais atento à pesquisa produzida no Brasil e a suas potencialidades de aplicação na solução de problemas brasileiros não é nem pode ser condição suficiente para fechar esse fosso entre pesquisa e inovação, não resta dúvida de que pode constituir, sim, uma condição necessária. O mínimo que se pode dizer é que a melhor circulação de informações sobre pesquisas realizadas no território nacional não prejudicaria o processo de transferência de tecnologia entre esses setores; mais provável é que ela viesse a contribuir para formar no público –e, por extensão, entre empresários– uma visão mais abrangente e completa sobre quais são as instituições e grupos de pesquisa brasileiros capazes de aportar soluções de produtividade e qualidade para a economia nacional.
      Não se iludam cientistas e empresários, contudo, com a imprensa. Ela não é uma instituição educacional, nem tem por missão única e exclusiva a disseminação de informações, no sentido bruto desta palavra. Um de seus mais importantes pontos de partida é a noção de que não existe informação neutra ou objetiva, cuja qualidade independa de quem a emite. Ao contrário, a imprensa merecedora deste nome supõe que a informação é inextricável dos interesses a ela associados –mesmo no mundo da ciência– e que faz parte de sua missão incluir ou considerar esses matizes ou vieses na própria tarefa de informar. Tal imperativo, muito bem aceito e valorizado no jornalismo político e econômico, costuma ser mal compreendido quando jornalistas de ciência tentam ser fiéis a ele. Um exemplo flagrante e atual de falhas recorrentes de comunicação que costumam ser atribuídas à imprensa –a celeuma dos alimentos transgênicos– ajudará a tornar mais claro esse ponto.
      Assim como o restante da sociedade brasileira, a imprensa descobriu tarde, no segundo semestre de 1998, que os alimentos transgênicos estavam para chegar à mesa de todos, quando a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) aprovou a soja Roundup Ready, resistente ao herbicida Roundup (ambos da empresa Monsanto), para plantio em escala comercial. Ficamos então sabendo que a comissão já havia dados dezenas, centenas de licenças para cultivo experimental. Nós, jornalistas, falhamos miseravelmente em alertar e preparar o público para o que estava por vir. Iniciou-se então um debate confuso, marcado por argumentos fundamentalistas de parte a parte, destinados mais a confundir do que a esclarecer. Até hoje, três anos depois, o país ainda não conseguiu chegar a algo próximo do consenso sobre os alimentos transgênicos. De um lado, governo federal e indústria, com apoio de boa parte da comunidade científica, defendem os vegetais geneticamente modificados. De outro, ONGs, a Justiça Federal e alguns governos locais e estaduais têm conseguido barrar sua expansão pelo território nacional (mas não o contrabando e plantio ilegal de sementes argentinas no RS e no PR, variedade que ficou conhecida como soja Maradona).
      Mas o que pensa a população sobre os transgênicos, se é que tem condições de pronunciar-se sobre esse tema? Até que ponto vai o conhecimento, ou a ignorância, sobre esse assunto?
      Uma das raízes da deficiência do trabalho da imprensa se encontra na própria realidade educacional brasileira. O jornalismo científico, por aqui, tem de partir de um patamar muito baixo. Se nos Estados Unidos já é alto o grau de desinformação sobre as bases da genética, por exemplo, a ponto de apenas 21% de seus cidadãos serem capazes de dar uma definição de DNA (Augustine, in Science, mar.1998, v. 279, p. 1640), no Brasil se pode afirmar com segurança que a ignorância científica é ainda mais chocante.
      Basta mencionar que, segundo pesquisa de opinião do instituto Datafolha realizada com paulistanos poucos dias depois do anúncio da finalização do sequenciamento do genoma humano (um evento que foi manchete dos principais jornais brasileiros e do mundo em junho), apenas 4% dos entrevistados souberam definir com alguma correção o que é genoma. E cabe assinalar que o grau de instrução não melhora muito o quadro de desconhecimento: mesmo entre paulistanos com nível superior de escolaridade, meros 17% foram capazes de oferecer respostas aceitáveis.
      Parece mínima, assim, a condição do público brasileiro para participar, de maneira informada e democrática, de um debate como os dos alimentos transgênicos, ou das implicações da pesquisa genômica. Seria uma falácia, no entanto, concluir que essa constatação diminua, por menos que seja, seu direito de tomar parte nessa discussão. Seria antes o caso de dizer que esse estado de coisas cria uma obrigação para todos os atores do processo, a começar pelos jornalistas: fornecer informação compreensível, qualificada e contextualizada, da engenharia genética à transgenia, da genômica à eugenia.
      São três os níveis de desafio a serem enfrentados simultaneamente pela divulgação científica, representados por três patamares de ignorância pública:

1. A ignorância de base – É preciso um esforço considerável para esclarecer mesmo os conceitos mais basilares, principiando com células, cromossomos, mitose e meiose etc., pois eles são ignorados até mesmo entre intelectuais;
2. A ignorância sobre o que está acontecendo – A pesquisa genética está entre os campos mais produtivos da ciência, hoje, com publicação copiosa de trabalhos. É fundamental acompanhá-los e cobri-los, jornalisticamente, o que equivale a dizer: com critério, hierarquizando e noticiando com destaque somente o que de fato for importante;
3. A ignorância das implicações – Investigar e expor as conseqüências éticas, jurídicas, sociais e políticas das biotecnologias -do monopólio da produção de sementes à patente de seres vivos, da nova eugenia à discriminação genética no emprego e por seguradoras. É talvez a mais complexa de resolver, pois dela padecem inclusive jornalistas.

      Esse desafio triplo está posto para a divulgação científica, mas não só para ela. Especial atenção deveriam ter para com ele as autoridades reguladoras, encarregadas que são de defender o interesse difuso, pois dos interesses particulares da indústria pode cuidar ela mesma. Sem uma intervenção esclarecida e decidida da imprensa e do Estado, a questão da biotecnologia continuará extraviadas num bate-boca fundamentalista, e cada vez mais distante do controle social que sobre ela deveria ser exercido.
      Cabe aqui uma explicação sobre por que prefiro falar em informação e não em educação, para referir-me à missão da imprensa em relação às questões complexas da ciência e da tecnologia, como genética e transgenética, Amazônia e mudança climática etc. O pressuposto, ao se falar em educação, costuma ser o de que há fatos objetivos e inquestionáveis produzidos pela ciência isenta e de que, uma vez que o público tenha acesso a eles, o consenso racional se estabelecerá. Nada mais distante da realidade. Essas questões são, e continuarão a ser por muito tempo, questões políticas. A complexidade científica compõe somente seu pano de fundo, e é a partir dela –e não determinada por ela- que a sociedade, ou a comunidade de nações, tem de tomar decisões negociadas. Qualquer pessoa que tenha mantido o mínimo contato com a esfera da pesquisa científica sabe que esse é o último campo em que se pode encontrar consenso sobre coisa alguma.
      Há toda uma retórica sobre a necessidade de educar o público –na CTNBio como nas áreas do MCT e do Itamaraty envolvidas na questão climática–, mas parece haver pouca disposição real para considerar posições e argumentos que não rezem pelo mesmo missário, seja o da biossegurança, seja o da doutrina da soberania sobre a Amazônia e da ameaça de sua "internacionalização". Nesse debate, os donos do poder –e também seus adversários– precisam estar atentos para o fato de que aumento da quantidade de informação nem sempre redunda em apoio à posição que defendem. É só na visão dos que têm interesses em jogo, ou que então não conseguem discerni-los de razões objetivas, que essas questões aparecem como uma luta do bem contra o mal, ou das luzes contra as trevas, ou ainda de tecnófilos contra neoluditas. A primeira missão de jornalistas que cobrem essas questões, enfim, é vacinar-se contra o maniqueísmo.
      Permanece, no entanto, a pergunta sobre quanto o jornalismo científico facilita –ou, no caso, impede– a adoção de novas tecnologias pelas empresas do Brasil. Se o papel de facilitador for entendido como o de um intermediário de preferência incapaz de compreender, contextualizar e problematizar as próprias técnicas e os conhecimentos, tudo se resume a um mal-entendido e a falsas expectativas. A imprensa nunca se rebaixará à função de simples reprodutor de informações. Mas ela padece, sim, de uma crônica falta de informação e de atenção sobre pesquisas nacionais, e nesse sentido –ao menos por omissão– acaba atuando como um elemento a mais numa comunicação entre empresas e instituições de pesquisa já por si mesma orgânica e cronicamente deficiente.
      Para aterrar esse outro fosso, ou seja, entre as instituições de pesquisa e os órgãos de imprensa, é preciso criar um serviço de informações para jornalistas ágil e confiável. Hoje, eles são assediados diariamente por toneladas de press releases de escassa ou nenhuma relevância. Algumas instituições de pesquisa, preocupadas com a falta de repercussão pública da produção de seus cientistas, tentam profissionalizar o serviço de assessoria de imprensa e criar um fluxo de informações para jornalistas, mas são normalmente iniciativas isoladas e que sofrem muitas soluções de continuidade, com as mudanças políticas periódicas que são características das instituições públicas.
      É preciso começar a pensar num serviço nacional e centralizado de informações sobre pesquisas para jornalistas especializados em ciência. Com os recursos hoje oferecidos pela internet, ele não teria custos proibitivos de implantação, e há já no exterior iniciativas de sucesso que podem oferecer um ponto de partida, como os serviços EurekAlert, Science Online e Press Nature, todos de acesso restrito para jornalistas credenciados. Esse credenciamento é necessário para que informações possam ser antecipadas aos profissionais sob embargo, ou seja, com o compromisso de publicação da reportagem apenas após determinada data, o que compatibiliza um trabalho jornalístico mais apurado com a prioridade da publicação científica.
      Um serviço desse gênero seria de pouca valia, no entanto, se funcionasse como uma espécie de quadro de avisos, em que cada um e todo mundo pode pendurar o que bem entender; em pouco tempo, nenhum jornalista mais se daria ao trabalho de consultá-lo. É fundamental que o serviço disponha de um filtro de caráter editorial, ou seja, que só dê guarida a comunicações que cumpram requisitos mínimos de qualidade científica (como a publicação em revistas com revisão por pares, ou a aceitação em congressos científicos nacionais e internacionais) e de relevância jornalística. As instituições de fomento à pesquisa têm provavelmente o melhor acervo centralizado de informações sobre estudos em fase de conclusão e de qualidade. Por isso, deveriam assumir a responsabilidade de intermediar esse fluxo de informações entre institutos de pesquisa e a imprensa, com o que esta se encarregará então muito melhor da tarefa de disseminar essas informações para o público, empresários e investidores aí incluídos, da maneira como se deve: com precisão, contextualização e crítica. Esse é o melhor serviço que ela pode prestar ao país.

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OBS: Comunicação apresentada na mesa-redonda A população informada: divulgação científica, incluída na Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, em Brasília, no dia 20 de setembro de 2.001.

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*Marcelo Leite é jornalista, editor de Ciência da Folha de S.Paulo, autor dos livros Folha Explica/Os alimentos transgênicos (Publifolha, 2000) e Folha Explica/A floresta amazônica (Publifolha, 2001).

 
 
 
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