:: As fontes “laranjas” ou “mulas” que maculam a comunidade científica

Wilson da Costa Bueno*

      As denúncias são cada vez mais freqüentes e envolvem estratégias que chegam a causar inveja aos bens produzidos filmes de espionagem ou a romances policiais de prestígio. As fontes ditas científicas estão cada vez mais comprometidas com os grandes interesses e, em muitos casos, chegam a se prostituir para fazer valer a ganância de laboratórios farmacêuticos, de empresas agroquímicas ou de biotecnologia. Para não falar da indústria tabagista que tem um passado negro nesta área e que, apesar disso, continua vendendo drogas consideradas lícitas , respondendo por milhões de mortes todos os anos, no mundo inteiro.
      Vejamos alguns casos bastante recentes que envolvem e comprometem a reputação da comunidade científica (embora aqueles que assim procedem não deveriam ser considerados como dela participantes).
      Pesquisadores corruptos encaminharam, durante muito tempo, sem qualquer conhecimento dos editores de revistas científicas da área de saúde, artigos produzidos pela indústria farmacêutica . Trocaram a sua assinatura e a sua credibilidade por alguns milhares de dólares. Alguns deles sequer chegaram a ler os textos que encaminharam para publicação porque, na verdade, o seu compromisso, como parece ser o de muitas organizações que atuam nessa área, era apenas com a saúde do seu bolso.
      A análise dos artigos publicados durante um período de 6 meses de 2005, da revista Nature, uma das mais prestigiadas do mundo, revelou que das 79 matérias publicadas sobre biologia molecular, existiam pelo menos 12 cujos autores foram inspirados por interesses extra-científicos. Ou seja, tinham vínculos com empresas biotecnológicas, pedidos de patente em seu nome sobre o assunto do estudo ou mesmo interesse financeiro na comercialização dos resultados do trabalho divulgado na publicação. Pior ainda: 2/3 deles não revelaram esta informação aos editores da Natura, afrontando, portanto, as normas que regem a conduta ética a ser observada pelos autores.
      No Brasil, recentemente, por ocasião do debate que resultou na aprovação da Lei de Biossegurança, as empresas de biotecnologia (Monsanto, Syngenta etc), através de uma ONG muito singular, patrocinaram uma coluna no suplemento agrícola do jornal O Estado de S. Paulo, com direito a chamada de capa, para fazer o lobby a favor dos transgênicos. A coluna pecava tanto pela falta de transparência que a indicação de que se tratava de um informe publicitário, obrigatória na imprensa séria, aparecia na vertical, com o objetivo explícito de esconder essa situação. Quem assinava os artigos a favor da produção e comercialização dos transgênicos, inclusive argumentando contra o licenciamento ambiental? Pesquisadores, muitos deles titulares de nossas principais universidades, como a USP, por exemplo.
      Por uma incrível coincidência (só acredita quem é bobo!), a coluna desapareceu após a aprovação, confirmando a intenção propagandística. Certamente, muitos pesquisadores o fizeram por acreditar mesmo no que escreviam (há pesquisadores – apostamos nisso – que dão a vida para continuar os seus trabalhos, o que não está fácil em universidades públicas sucateadas pelos governos), mas o patrão, pelo menos o patrão da coluna, tinha outros interesses. Talvez muitos deles tenham inclusive aproveitado o espaço que as empresas de biotecnologia lhes cedeu gratuitamente para estar presente na mídia, ainda que seja estranho perceber que, em geral, alguns nunca tenham se esforçado antes ou depois da aprovação da Lei de Biossegurança para realizar este debate pela imprensa. Tudo no fundo é mesmo uma questão de foro intimo. Como diz o ditado, cada cabeça uma sentença e cabeça de cientista não é território fácil de explorar.
      A questão ética é bastante complicada no mundo da ciência e da tecnologia e, por isso, os jornalistas e divulgadores da ciência devem ficar sempre com um pé atrás quando se defrontarem também (ou sobretudo) com fontes associadas a temas ou áreas que movimentam bilhões de dólares em todo o mundo.
      É preciso perceber que o diretor de pesquisa e desenvolvimento da Monsanto ou da Merck (que costuma proclamar os seus prêmios Nobel para justificar episódios lamentáveis como o do Vioxx) não são mais prioritariamente cientistas ou pesquisadores na verdadeira acepção da palavra, mas funcionários dessas organizações e que têm contas a prestar para os investidores. Pouco se importam com o interesse público, embora hipocritamente estejam repetindo o discurso da responsabilidade social e empreendendo ações pontuais para mascararem suas verdadeiras intenções.
      Não se pode generalizar, no entanto, achando que todo pesquisador, cientista ou professor é mal intencionado ou está “a serviço de” porque, felizmente, há uma parcela considerável de acadêmicos absolutamente éticos e comprometidos com o interesse público. No caso brasileiro, muitos dedicam suas vidas à ciência e a tecnologia , recebendo pouco em troca porque as políticas de C & T, e a ciência e a tecnologia de maneira geral, não são consideradas prioritárias no Brasil . Entra governo , sai governo, e estamos cada vez mais, na contramão da história, nos tornando exportadores de commodities. Exportamos minérios, soja e até talentos e há quem continue achando, em Brasília ou em outro lugar mais arejado do que a terra dos políticos, que esta é a “nossa vocação”. As empresas consideradas melhores para trabalhar não são as universidades ou os institutos de pesquisa, mas a Vale do Rio Doce, a Philip Morris e outras menos votadas, o que evidencia o caminho que estamos sinalizando para as novas gerações.
      O certo é que existem fontes “laranjas” ou “mulas” aos montes no mundo da ciência e da tecnologia e elas carregam o título de doutor, exibem formidáveis “currículos Lattes” e costumam andar por aí de jalecos brancos, como a indicar sua “pureza de princípios”.
      É bom que jornalistas e divulgadores fiquem atentos. Treinados em programas de “media training” e assessorados por agências de comunicação/RP e assessorias de imprensa competentes, os executivos de grandes corporações estão capacitados para exibirem alta performance em comunicação. São até cobrados por isso e cada vez mais essa é a exigência dos “head hunters” na contratação de diretores ou presidentes de empresas.
      A aproximação das empresas com as universidades (a indústria agroquímica está dentro das salas de aulas dos cursos de agronomia e os laboratórios nas faculdades de Medicina) não ocorre por nenhuma forma de altruísmo. Por isso, vamos continuar torcendo o nariz para aquele logo da Novartis que macula a página de leitores da maravilhosa revista da Fapesp. Ele sempre nos fará lembrar da ação ardilosa desta empresa no caso da BioAmazônia, quando, espertamente, tentou avançar sobre a nossa biodiversidade e o teria feito, se não fosse apanhada, juntamente com os seus parceiros, na “boca da botija”.
      Se estas empresas se dispuserem a promover cursos para formação de jornalistas, desconfie. Se estas empresas se mostrarem generosas na promoção de prêmios/concursos de reportagens, desconfie. Elas , no fundo, não respeitam o nosso trabalho e devem acreditar que , com essas ações mercadológicas, poderão receber convites para sentarem tranquilamente à nossa mesa. Cuidado com elas: há quem garanta que, quando isso acontece, elas costumam avançar sobre o nosso prato e devorar a nossa comida.
      As fontes comprometidas devem ser desprezadas, repudiadas, denunciadas violentamente.
      O Jornalismo Científico será efetivamente sério, investigativo, apenas se independente. As grandes corporações já dispõem de profissionais, verba publicitária etc para alardearem os seus produtos e serviços. Investem bilhões em propaganda e marketing. Reserve o nosso espaço para o interesse público. Este deve ser o nosso compromisso.

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*Wilson da Costa Bueno é jornalista, professor do programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UMESP e de Jornalismo da ECA/USP, diretor da Comtexto Comunicação e Pesquisa.

 
 
 
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