Jornalismo Científico: teoria e prática


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Imprensa , divulgação científica e grandes interesses

Wilson da Costa Bueno*

      A realização das reuniões anuais da SBPC, que completou 60 anos em 2008, têm trazido à tona , de maneira recorrente, a problemática fundamental da divulgação científica em nosso País. Na verdade, interessa-nos sobretudo analisar algumas tendências e desafios do Jornalismo Científico, prática muita antiga em nossos terras porque já presente no Correio Braziliense, de Hipólito da Costa, que inaugurou há 200 anos a imprensa brasileira.
      A literatura na área da divulgação científica privilegia, especialmente, dois grandes temas: a decodificação do discurso científico (tornar a ciência acessível para o universo comum dos mortais) e o embate nem sempre tranqüilo entre pesquisadores/cientistas e jornalistas. Não que esses dois temas não incluam aspectos relevantes do processo de divulgação, mas está na hora de incorporarmos outras questões não menos fundamentais: o sigilo e o controle da informação científica e a contextualização necessária dos fatos e descobertas científicas.
      A visão moderna que contempla a ciência e a tecnologia como mercadorias tende a desmistificar a perspectiva secular que as associava ao interesse público, como se estivessem a serviço da humanidade, identificadas com a noção de progresso. Hoje, esta leitura deve ser refeita porque, cada vez mais, empresas e governos se apropriam da ciência e da tecnologia com o objetivo de garantir privilégios e exclusividades (elas, portanto, não circulam livremente como se postulava), de subjugar os adversários e de fazer prevalecer os seus interesses.
      Os exemplos se contam às dezenas, mas é fácil identificar essa perspectiva predadora e monopolista da ciência e da tecnologia "a serviço de" em segmentos como a indústria bélica, da saúde, agroquímica e de biotecnologia, entre muitos outros. A contrapartida do chamado progresso técnico é, quase sempre, o monopólio (o das sementes por empresas transgênicas como a Monsanto é escandaloso!), a exclusão (há países que podem e os que não podem desenvolver tecnologia) e a espionagem (o jogo para vencer a concorrência é pesado mesmo e não descarta o suborno, a espionagem, o assassinato etc).
      O controle da ciência e da tecnologia se estende também ao processo de circulação de informações, com denúncias recorrentes de assédio e manipulação de importantes publicações científicas por empresas privadas, quase sempre com a cumplicidade de "cientistas/pesquisadores" sem escrúpulos.
      Esta é uma questão que a comunidade científica, muitas vezes, não gosta de debater e a imprensa de investigar, certamente por inúmeras razões. Mas a relação promíscua entre pessoas que se proclamam "da ciência" e os grandes interesses privados tem se aprofundado e, volta e meia, estão elas na mídia, nos congressos científicos e até no Parlamento fazendo lobby para corporações globais.
      A imprensa - e os jornalistas em particular - bastante desatentos, não conseguem enxergar além da notícia e tomam informações contidas em releases gerados por entidades a serviço de interesses poderosos como  verdadeiras. Já apontamos aqui a ação do CIB - Conselho de Informações sobre Biotecnologia como uma dessas fontes, que, travestido e/ou apoiado pela ciência, faz a apologia dos transgênicos e ajuda a encher o cofre das multinacionais da biotecnologia. A mesma imprensa que não consegue perceber que as empresas que produzem sementes engenheiradas são as mesmas que dominam o mercado dos agrotóxicos (veneno e não remédio de planta!), embora, em seu discurso, tentem propor um antagonismo irreal.
      A ação da Big Pharma, conjunto dos principais laboratórios farmacêuticos do mundo, também não tem sido percebida pela mídia, seduzida, geralmente, por notícias sobre medicamentos milagrosos, enquanto, por debaixo do tapete, as corporações (você lá leu A corporação, de Joel Bakan,  recém lançado no Brasil, com o sugestivo subtítulo A busca patológica por lucro e poder?) inventam doenças, boicotam os genéricos, estendem patentes exauridas, quando não utilizam cidadãos em todo mundo como cobaias ( você assistiu ao filme O jardineiro fiel? ou leu o livro de Marcia Angell, A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos?). Você pode não ter se dado conta mas os grandes laboratórios investem mais, muito mais em marketing do que em pesquisa em desenvolvimento e , particularmente nos países ricos, são grandes financiadores de campanhas eleitorais. A família Bush (o pai do atual presidente dos EUA andou envolvido em escândalo com um laboratório farmacêutico) tem o rabo preso com eles, assim como tem com os falcões da guerra e os predadores do meio ambiente.
      Enfim, "não existe almoço grátis" nessa área e muitas fontes tidas como de prestígio, independentes, são apenas bocas alugadas, recebem soldo de empresas, disfarçado de consultorias, palestras, quando não são mesmo seus funcionários de carreira.
      A divulgação científica , e o jornalismo científico, precisam estar mais politizados, incorporando outras vertentes além da meramente técnica (na verdade, pretensamente técnica) para que não sejam utilizados como espaços de consolidação de monopólios e cartéis de toda ordem.
      Felizmente, em nosso País, encontramos um número enorme de cientistas/pesquisadores efetivamente comprometidos com a aventura da ciência, com a democratização do conhecimento e que não se prestam a este jogo sujo que privilegia o interesse financeiro em detrimento da cidadania.
      A ciência e a tecnologia devem estar a serviço da coletividade e, por isso, é vital a implementação de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento científico e tecnológico (e também a inovação) e atentas à estratégia das ações monopolistas. É preciso mesmo quebrar as patentes dos laboratórios, quando está em jogo a saúde dos brasileiros; é preciso investir contra a indústria do tabaco, das armas, do fast-food, das bebidas, regular melhor o avanço insustentável dos agrotóxicos e o monopólio dos adubos e fertilizantes. É essencial banir de vez o amianto, enquadrar as empresas de celulares (as maiores produtoras de lixo eletrônico), exigir a rotulagem dos transgênicos (se não fazem mal por que as empresas insistem em não rotular?) e não abrir as pernas para os importadores de pneus usados.
      A divulgação científica e o jornalismo científico precisam estar livres destas pressões insuportáveis de governos e empresas. A Academia, os Sindicatos, a sociedade civil devem estar empenhados no processo de alfabetização científica. Boa próxima reunião da SBPC para todos nós.

Em tempo: está na hora de algumas entidades profissionais ou científicas ou mesmo universidades e empresas públicas de pesquisa tornarem transparente o contrato de parceria com algumas empresas para que não se repita o escândalo da BioAmazônia com a Novartis (entre no Google e poderá recuperar este triste episódio). É fundamental que a opinião pública saiba o que anda correndo por trás das cortinas.

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*Wilson da Costa Bueno é jornalista, professor do programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UMESP e de Jornalismo da ECA/USP, diretor da Comtexto Comunicação e Pesquisa.

 
 
 
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