Jornalismo Científico: teoria e prática


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Leitura crítica sobre uma experiência científica: o caso Vitória

Dalmo Oliveira da Silva*

      Resumo

      O presente artigo propõe uma leitura crítica do discurso elaborado pela Imprensa brasileira na cobertura da primeira experiência de clonagem animal realizada no país. Analisa a construção da notícia científica a partir de aparatos semiológicos, buscando identificar possíveis erros na sintaxe jornalística das notícias veiculadas sobre o assunto. Trata do manejo de agenda-setting organizado por assessoria de imprensa em C&T.

      1 - Contextualização

      Um evento inédito no campo da pesquisa agropecuária brasileira épano-de-fundo para a análise de como se dá a transposição do fato científico para ouniverso da percepção midiática da notícia jornalística. O aparecimento da bezerraVitória como símbolo de uma competência científica e representação do status alcançadopela comunidade científica nacional, que, com o domínio de uma tecnologia, defronta-secom uma espécie de rito de passagem para o que se convencionou chamar globalização.
      Num momento em que a competitividade científica se transforma emexigência à inclusão social, o anúncio sobre a produção do primeiro clone animalbrasileiro surge na imprensa nacional sob a influência de um discurso típico daconjuntura neoliberal. A tônica ufanista se repete no noticiário, denunciando aorquestração do enunciado pautado pelas assessorias oficiais. "Esse sucesso inicialrepresenta a viabilidade biológica da tecnologia nas nossas condições, mas por outrolado evidencia a necessidade de intensificação dos estudos objetivando melhores índicestécnicos", diz a nota técnica divulgada pela Embrapa no jornal O Globo(21/03).

      2 - A marca"Dolly" e a revolução biotecnológica

      Daqui há mais algumas dezenas de anos quando o fenômeno darevolução biotecnológica estiver sendo ensinado nos bancos escolares, alguns símbolosdessa era serão usados como referência à metodologia que costura genes. Dolly,certamente, será o mais representativo deles. A força da marca da ovelha clonada naEscócia, em 1996, pode ser sentida no noticiário que reportou a experiência da EmpresaBrasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que deu origem à bezerra Vitória emmarço desse ano. A comparação seria inevitável, mesmo se tratando de um procedimentodiferente daquele que gerou a ovelha transgênica.
      "Parece que subimos mais um degrau em direção ao terraço doPrimeiro Mundo, com o clone da bezerra Vitória, realizado pela Embrapa", escreveFélix Maier, leitor da revista ISTOÉ. A manifestação de Maier parece serresultado direto do discurso construído pela revista, que ressalta na edição de 28 demarço o ingresso do Brasil "para o fechado clube das nações que desenvolvemexperiências com clonagem animal".
      "Quase uma Dolly", diz a revista Veja na semana em que anotícia estourou. Já no título o semanário avisa que o Brasil quase chegou lá... Denovo Dolly como modelo de perfeição. A tecnologia a ser copiada como prova decompetência científica. O discurso carrega traços inequívocos do difusionismoengendrado nos institutos de pesquisa, principalmente a partir dos anos 60, que prega ummodelo de desenvolvimento e uma concepção de modernização como um novo "tipo demudança social no qual novas idéias são introduzidas em um sistema social tendo emvista produzir um aumento de renda per capita e dos níveis de vida mediantemétodos de produção mais modernos e de uma organização social aperfeiçoada"(ROGERS, 1962) . (1)

      3 - Agenda-setting: umespetáculo de notícia

      O ranço difusionista nos textos jornalísticos analisadoscertamente tem origem na construção da abordagem sugerida pelas agências de relaçõespúblicas (2)  mobilizadas pela comunidade científica responsável pelaexperiência. A notícia de Vitória foi produzida a partir de uma bem articulada campanhade mídia. A imprensa só tomou conhecimento do fato vários dias depois do acontecido."O anúncio oficial foi feito dia 21, pelo ministro da Agricultura e doAbastecimento, Marcus Vinícius de Morais", informa o house-organ da Embrapa (Folhada Embrapa n° 49 - Março de 2001). O caráter sigiloso da divulgação foi usadocomo mais uma estratégia de marketing para impactar ainda mais o "valoragregado" quer continha a notícia.
      "Vitória nasceu forte, parto normal. É uma pisciana". Afrase foi atribuída pela revista ISTOÉ como sendo do veterinário Evandro SouzaSantos, da equipe da Embrapa, comunicando o sucesso do parto aos demais mortais que nãopuderam presenciar o milagre científico. "O orvalho decorou as folhas de capim degotículas que mais parecem pingentes de cristal e transforma o pasto em uma imensajoalheria", descreve o texto da assessoria de imprensa da estatal, pintando o quadrodo nascimento de Vitória com as cores de uma narrativa bastante familiar que fala de umaoutra manjedoura.
      O texto jornalístico da cobertura muitas vezes perde o foco dedivulgação científica para se transformar, brilhantemente, numa bem redigida peçapromocional. A vaquinha do presépio é transformada no próprio "cordeiro" damídia. "Os cientistas atualmente estão trabalhando numa fantástica linha de novastecnologias que revolucionarão nossos produtos e processo de produção (...) o desafio,em cada caso, não é apenas técnico, e sim comercial, ou seja, desenvolver versõeseconômicas e práticas desses produtos".(3)
      A importância comercial do projeto Vitória suplanta seu interessecientífico. A estratégia de divulgação segue a mesma lógica. Trata-se de um produto,planejado como tal desde sua concepção primeira. "A experiência da Embrapa aindanão pode ser transferida para os currais. Apenas quatros dos 29 novos embriões vingarame foram transplantados para o útero de vacas da raça simental, boa produtora deleite", analisa Veja (página 121 - 28.03).
      O enfoque espetacular dado à notícia da experiência científica quegerou Vitória denuncia o processo de descontextualização por que passa a informaçãocientífica, sob o pretexto dos comunicadores de torná-la mais inteligível ao públiconão especializado. "Brasileiro que copiou bezerra não descarta uso da técnica emhumanos", destaca o jornal Folha de São Paulo (página A12 - 23.03). Em seusubtítulo, o diário paulista apela para uma das regras básicas de qualquer editor quequeria fisgar a audiência: a utilização de interesses previsíveis, como a importânciadas conseqüências dos fatos narrados . (4)
      Segundo Medina (1988), "a mensagem jornalística como um produtode consumo da indústria cultural desenvolveu uma componente verbal específica, que servepara chamar a atenção e conquistar o leitor para o produto/matéria". Os apelosverbais empregados no noticiário avaliado pontuam a posição que os narradoresescolheram para retratar o fato científico, construindo a informação jornalística apartir, principalmente, das fontes oficiais.
      No escopo da narrativa produzida pela imprensa brasileira sobreVitória não se encontra fonte alienígena ao universo gerador da experiência. É omonopólio da fala, exercido sem constrangimentos pela Embrapa. Na absoluta maioria dasmatérias veiculadas no dia seguinte ao da divulgação oficial, as principais fontesouvidas eram do Ministério da Agricultura e do Abastecimento e da equipe de pesquisa ouda diretoria da Embrapa. Rodolfo Rumpf (o pai do clone), Alberto Portugal (presidente daestatal) e o ministro Marcus Vinícius Pratini, praticamente foram os únicos coadjuvantesde Vitória nesse conto biotecnológico narrado pela mídia impressa nacional.

      4 - Alfabetizaçãocientífica: a mobralização da imprensa

      A obtenção pelos cientistas do primeiro clone animal brasileirocertamente é um evento que merece a maior publicização possível. O papel da imprensa,aliás, para além de manter-se como parte da indústria cultural, tendo a notícia comoseu insumo primordial, é o de trazer a conhecimento das mais diversas camadas sociais ainformação mais fiel ao fato científico ocorrido. Ao passo que a teoria difusionistapreconiza a ação de especialistas convencendo os consumidores a adotar inovaçõestecnológicas e científicas, uma tendência cada vez maior entre os comunicólogos é ada função educadora da imprensa no que tange o suporte à sociedade no entendimentosobre os fatos científicos.
      Para os que vão contra essa proposta, o papel pedagógico da imprensaé mais uma contradição do jornalismo, que também se pretende como ciência. SegundoMEDITSH (1992) "Uma pedagogia - teoria do conhecimento posta em prática - quepretenda não apenas sobreviver à realidade, mas também intervir para a suatransformação, precisa entender essa realidade e como o conhecimento se relaciona comela". (5)
      No caso Vitória, os jornalistas se esforçam para explicar porque abezerra da Embrapa não foi clonada exatamente como a ovelha do escocês Ian Wilmut. Aspeças giram em torno exatamente de explicar as diferenças tecnológicas entre o processoutilizado pelos brasileiros e aquele desenvolvido na geração de Dolly. "Rumpf,porém, aprendeu algumas das técnicas necessárias com Laurence Smith, ex-aluno de IanWilmut, hoje na Universidade de Montreal (Canadá)", explica Folha de São Paulo.
      "Para Dolly, segundo o pesquisador, foram usadas células oriundasdas glândulas mamárias de uma fêmea adulta, enquanto para Vitória as células são deum embrião de apenas cinco dias coletado de uma vaca da raça simental pela técnicaclássica de transferência de embriões", detalha a Gazeta Mercantil (páginaB24 - 22.03).
      No mesmo dia o Correio Brasiliense ocupa toda sua página 14para mostrar o que havia ocorrido cinco dias atrás na fazenda Sucupira, onde Vitórianasceu. Um dos apelos narrativos utilizados pelo jornal é uma arte onde se tenta explicarao leitor, por meio de desenhos, "como é o processo". "Vitória nasceu pormeio de uma técnica conhecida como transferência de núcleo", desenha a legenda doCB.
      Longe de todas as circunstâncias e detalhes relacionados ao complexoprocesso empregado pela biotecnologia que originou Vitória, os comunicadores se desdobrampara, primeiro compreender, e depois "traduzir" tudo o que ocorreu noslaboratórios do centro de pesquisa. Segundo BURKET (1986), "Menos administrável éo risco de se destorcer a notícia de ciência nessa busca de algo novo para leitores eespectadores. Em alguma parte entre o processo de seleção de tópicos e o processo deredação, o cientista e o redator divergem". (6)
      Com a popularização dos serviços de relações públicas assessoresnos institutos de pesquisa, o processo de "alfabetização científica" toma suaação inicial junto aos profissionais de jornalismo que atuam na intermediação entre asfontes científicas e sua clientela jornalista que escreve sobre ciência nos grandesmeios de comunicação de massa. A prática do jornalismo científico pela assessoria daEmbrapa, no entanto, parece estar em desvantagem em relação à chamada"comunicação empresarial", adotada recentemente pela política decomunicação da estatal.
      Desta forma, a abordagem divulgada pela assessoria de imprensa estevemenos engajada na incumbência pedagógica que o jornalismo deveria assumir, que em prolde uma visão mais empresarial do fato científico. O enfoque na guerra no campo dabiotecnologia entre os países que se arvoram no desafio da clonagem, procura"ensinar" mais ao leitor sobre a disputa de novos nichos de mercado no campo dastecnologias avançadas, que sobre cultura e manejo de genes.
      Quando tenta "educar" o leitor sobre o assunto, o noticiárioé flagrantemente refém da informação disseminada pelos pesquisadores, principalmenteatravés das assessorias de divulgação. A cobertura do aparecimento da bezerra clonadapela Embrapa, sintomaticamente, se caracteriza pela apuração e sintaxe cartorial danotícia. A mídia deseduca cientificamente a população quando reproduz um discurso semconfrontá-lo com a opinião de outras fontes dissociadas do ambiente da experiênciaespecífica noticiada. Para BURKET, "uma crítica à redação de ciência popularenvolve acusações de que os redatores ignoram quem merece crédito igual, talvez maior,por este último avanço (...) Alguns funcionários de RP podem insistir em não dar osnomes de outros, alegando que não têm porque dar publicidade a trabalho de fora de suaspróprias instituições. Esse raciocínio espúrio indica uma disposição por parte doscientistas e do pessoal de RP para permitirem distorção em benefício pessoal".
      Vitória não era uma experiência inédita. Cientistas francesesapresentaram no dia 05 de março de 1998, no Salão da Agricultura de Paris,"Marguerite", uma bezerra clonada a partir de uma célula de embrião."Nascida no dia 20 de fevereiro, mas já com 48 quilos, Marguerite foi apresentadasomente em vídeo, já que não se quer correr o risco de que pegue uma doença na feirade animais de Paris, considerada 'a maior fazenda do mundo', explicou um de seus 'pais' doInstituto Nacional de Pesquisa Agronômica (INRA).", informa o Jornal do Commerciode Pernambuco em sua página de Ciência & Meio Ambiente (06.03.98).

      5 - A notícia comoferramenta de posicionamento estratégico

      Segundo KOTLER (1988), "a empresa não deve apenas desenvolver umaestratégia clara de posicionamento, ela deve também comunicá-la efetivamente". Anotícia científica é só mais uma das tantas ferramentas da administração demarketing. Porque a ciência e a tecnologia são peças indispensáveis da estratégiamercadológica. Claramente o jornalismo científico praticado na divulgação daexperiência que resultou Vitória foi utilizado como mais uma das peças de promoção,elaboradas dentro de uma visão de comunicação empresarial.
      Vitória significa o esforço de posicionamento da Embrapa, numa açãode marketing definida por KOTLER como "estratégia de clube exclusivo". Aintencionalidade é de imprimir à opinião pública a posição de componente do seletogrupo de empresas qualificadas para o desenvolvimento de produtos da revoluçãobiotecnológica. "Com a bezerra 'Vitória', Embrapa dá um salto na pesquisabiotecnológica para o aprimoramento do rebanho nacional", destaca o Jornal doBrasil no subtítulo da matéria publicada no dia 22.03, página 16. No segundoparágrafo o diário carioca reproduz a opinião do ministro Pratini: "O feito insereo Brasil no rol das nações capazes de efetuar trabalhos desta envergadura eresponsabilidade científica". Na mesma linha de raciocínio a Folha de São Pauloaponta no seu editorial do dia 23 (página A2): "(...) É esse, sem dúvida ocaminho para o país, a exemplo do que ocorreu com a genômica, consolidar-se como naçãodo Terceiro Mundo com domínio de tecnologia de clonagem".
      A Agência Estado distribuiu e a Folha do Povo, de MatoGrosso do Sul, por exemplo, reproduziu o seguinte lead: " O Brasil deu oprimeiro passo no domínio da tecnologia de clonagem animal (...)". A revista Dinheiropublica a matéria explicando "Como a Embrapa dominou o know-how de produção decópias". Na reportagem, em tom espetacular, a revista abre espaço inclusive paraambientar os leitores ao momento do parto, citando até o estilo da música que a equipecientífica ouvia na hora do nascimento de Vitória: "Ao som new age dacantora Enya, em três simples laboratórios de paredes brancas e com um orçamento de R$300 mil, uma equipe de 20 cientistas brasileiros da Embrapa Recursos Genéticos apresentouna quarta-feira, 21, uma façanha: Vitória, uma simpática bezerra da raça simental, decabeça branca e orelhas castanhas, é o primeiro animal clonado no Brasil".
      As técnicas de narrativa jornalística poderiam ser definidas porteóricos de marketing como canais para efetivação de uma espécie de"posicionamento psicológico", da marca Vitória/Dolly. "Outros homens demarketing dão mais ênfase ao posicionamento real, onde eles examinamdetalhadamente cada aspecto tangível de um novo produto para conquistar umaposição". (7)
      "Quatro anos depois da criação da ovelha Dolly, pelo menos duasempresas americanas estão oferecendo serviços de clonagem para fazendeiros. Apesar demuitos deles ainda não poderem aderir à técnica, alguns já estocam células de animaisde raça no congelador. Somente como garantia.", o trecho da matéria de JustinGillis publicada recentemente no Washington Post não deixa dúvidas que a guerrade mercado já começou. A disputa no ranking do posicionamento da nova tecnologiaé uma questão também de convencimento. "Posicionamento é o ato de projetar aoferta da empresa de forma que ela ocupe um lugar distinto e valorizado nas mentes dosclientes-alvo", define Philip Kotler.

      6 - Responsabilidadesocial e jornalismo científico

      A mídia tornou-se hoje o elemento asseverador por excelência. Umaespécie de espelho tecnológico onde mal refletimos a realidade. Paródia derepresentação de um discurso elaborado por multi-emissores, mútuos canais e umarecepção largamente diversificada. A informação que "transmite" umarealidade, uma experiência, um fato precisa ser, sociologicamente falando, responsável,no sentido do compromisso com sua provável recepção.
      A responsabilidade de uma prática jornalística para a divulgaçãopública de C & T carece estar intimamente vinculada a uma postura ética, tanto dasfontes de informação, quanto dos canais de comunicação, para cumprir seu papel dealfabetizadora de uma consciência crítica da sociedade sobre a atividade científica.Tendo como base a metodologia utilizada pela sociologia da cultura de massa, aresponsabilidade social do jornalismo científico pode ser medida pelo teorema "quemdiz o que a quem e com que efeito" (LASSWEL, 1948).
      MEDINA diz que "para a maioria dos operadores de cultura de massa,há dois ‘atos de fé’ que permeiam sua atividade: primeiro que eles são, emúltima análise, os desencadeadores de certos efeitos da sociedade; segundo, quetrabalham em um produto cultural de segunda categoria, confrontado com outros produtosculturais mais bem conceituados na sociedade, como uma obra literária, uma tesesociológica, ou um objeto de arte" . (8)
      A leitura do noticiário sobre Vitória deixa transparecer o esforçodas fontes oficiais e da mídia ("quem") em desencadear na opinião públicanacional ("a quem") uma sensação de desenvolvimento tecnológico ("oque"), alcançado por determinado setor da comunidade científica tupiniquim. Anotícia do surgimento de Vitória é dada no intuito de legitimar o que os teóricoschamam de "modernização simbólica" (GALBRAITH, 1964). (9) Umprocesso que se alicerça sobre um discurso de modernidade ditado pela exigêncianeoliberal de um modismo científico desenvolvido para dar suporte ao poderio concentradonas grandes corporações transnacionais.
      A padronização de um modelo de desenvolvimento científico etecnológico mundializado é referendado subliminarmente no texto jornalístico quereporta a experiência da primeira clonagem animal brasileira. Depois da genômica, atransferência de núcleos é a bola-da-vez da massificação cultural. Trata-se de umproduto da ciência, e como tal deve ser vendido. Se a febre aftosa dizima rebanhos mundoafora, ou se o custo-benefício da produção de leite leva produtores gaúchos, emprotesto, a jogar fora num só dia 300 litros do produto, não importa. O que importa éque o Brasil já tem sua "Dolly"... para quê ela vai servir? Bem, essa é umaoutra história.

      7 - Conclusões

      Despreparada para a cobertura competente de C & T, a mídiabrasileira mostra-se, no caso específico da clonagem da bezerra Vitória, totalmenterefém das fontes oficiais geradoras da informação sobre a inovação científicanoticiada. Por sua vez, as agências de relações públicas ligadas à fonte científicaatuam como meros atravessadores do discurso tecnicista, reproduzindo, sem critérios, osjargões da sintaxe dos especialistas. O agendamento da divulgação científica,utilizado como ferramenta de estratégia de marketing, uniformaliza a distribuição e oacesso à informação, revelando a herança do modelo de invasão culturalcaracterístico da prática difusionista que ainda marca os processos de comunicação daEmbrapa.
      A popularização da notícia científica, nesse caso, obedece acritérios mais próximos ao universo publicitário, inviabilizando, pela entropia quegera, uma melhor performance dentro do conceito de "alfabetização científica"a que poderia servir o jornalismo de divulgação científica. O tratamento deespetacularização por qual passa a notícia sobre a geração de Vitória, se por umlado faz aumentar a audiência do noticiário, por outra via torna o importante eventocientífico apenas mais uma peça de entretenimento do público consumidor de notícias.
      Construída numa analogia, a notícia sobre Vitória tem seu enredoerguido a partir da representação simbólica que se tornou a ovelha Dolly. Os redatoresconduziram o enunciado sob o paradigma biotecnológico da clonagem escocesa, dogmatizandoainda mais a experiência científica, quando o mais positivo seria aproveitar o eventopara desmistificar o método científico.
      Vitória foi condenada então à representação de uma paródiatecnológica de Dolly. Mais que um avanço da ciência, foi configurada dentro de umesquema que ratifica a dependência de conhecimento dos países em desenvolvimento, ondetoda novidade sempre chega mais tarde. O experimento científico, assim, desconfigura-sede sua condição deontológica para ser representado na mídia como uma práxis carregadade uma outra simbologia: o mais moderno dos signos capitalistas. A mais nova façanhaindustrial.
      O episódio reflete uma evidência preocupante: a comunicaçãopública de C & T não consegue configurar uma metodologia adequada de apropriaçãoda informação científica, sendo incapaz de dar à notícia científica uma estruturasem interferências do discurso econômico e da política, quando não descamba paramodelos lingüísticos populescos. Fernanda Paraguassu informou no dia 22 de março, na GazetaMercantil, "O ministro da Agricultura, Pratini de Moraes anunciou ontem onascimento do primeiro animal clonado do Brasil". Evidentemente um enunciadocartorial. E nada mais representa melhor o jornalismo cartorial brasileiro que a GazetaMercantil.
      "Vamos fazer uma pausa nas CPI´s, plataformas, corrupção,brigalhada e olhar para o Brasil. A Embrapa, que reúne a nata da pesquisa brasileira.Executou caladinha a clonagem animal (...)", criticou a coluna de Ari Cunha, no dia23 de março, no Correio Brasiliense . "Tudo que a Embrapa faz é bem feito, ea prova está na equipe liderada por Rodolfo Rumpf finalizando com êxito a clonagemanimal", defende o colunista.
      Mauro Zanatta, dia 22 de março, de Brasília para o jornal Valor, produziuum lead tecnicamente redondo: "Uma bezerra da raça simental é o primeiroanimal clonado do Brasil. Batizada como Vitória, a bezerra é resultado de experiênciasbiotecnológicas da Embrapa Recursos Genéticos".
      Hagamenon brinca com a notícia científica sobre o surgimento deVitória em sua coluna "Figura da Semana": "Acaba de nascer a bezerrainteiramente clonada pela Embrapa, líder mundial em genética de águas profundas. Apesarda oposição da Igreja Católica, que só aceita a clonagem para fins de reprodução, noBrasil já se pratica este tipo de experimento há muito tempo". O humorista usaclaramente a notícia científica para deseducar os leitores, brincado com os conceitos emisturando fatos, épocas e atores da conjuntura brasileira neoliberal, numa peça pareceque escrita para quadro do programa Casseta & Planeta: Urgente!, humorísticoda Rede Globo.
      O fato científico, ao ser anunciadopublicamente, é apropriado, principalmente no exercício do jornalismo, por váriosestilos. A seqüência é uma distribuição por canais diferenciados para um público(audiência) também extremamente distinta. À medida que se afastada da matiz científicatorce sua sintaxe, construindo um enunciado mais adequado à sua audiência. Avariabilidade dos estilos discursivos que se apropriaram da informação sobre a clonagemde Vitória mostra como este tipo de informação pode ser oferecida a públicos deinteresse generalizado, desde que devidamente ou indevidamente manipulada.

      Notas

BURKETT, Warren. Jornalismo científico: como escrever sobre ciência, medicina e alta tecnologia para os meios de comunicação. Rio de Janeiro/RJ, Ed. Forense Universitária, 1990.

DIAZ BORDENAVE, Juan E. Além dos Meios e Mensagens.   Petrópolis/RJ, Ed. Vozes, 1983.

FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação?. Rio de Janeiro, RJ,  Ed. Paz e Terra, 1977.

GUARESCHI, Pedrinho A.  In Comunicação & Controle Social. Petrópolis (RJ): Ed. Vozes, 1991.

KOTLER, Philip. Administração de Marketing: Análise, planejamento, implementação e controle. São Paulo, Atlas, 1993.

MATTELART, Armand e Michèle. História das teorias da comunicação. São Paulo, Edições Loyola, 1999.

MEDINA, Cremilda de Araújo. Profissão Jornalista: responsabilidade social. Rio de Janeiro/RJ, Ed. Forense Universitária, 1982.

MEDINA, Cremilda de Araújo. Notícia, um produto à venda: jornalismo na sociedade urbana industrial. São Paulo, Summus, 1988.

MEDITSH, Eduardo. O conhecimento do Jornalismo. Florianópolis: Editora da UFSC, 1992.

ROGERS, E., - Diffusion of Inovations: Free Press, Glencoe, 1962.

SOMAVÍA, Juan. A Estrutura transnacional de poder e a informação internacional. In: Werthein, Jorge. Meios de Comunicação: Realidade e mito. São Paulo , Ed. Nacional, 1979.

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*Dalmo Oliveira da Silva é Jornalista, assessor de imprensa de uma unidade de pesquisa da Embrapa.

 
 
 
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