Dalmo Oliveira da Silva*
 Resumo
 O presente artigo propõe uma leitura crítica
do discurso elaborado pela Imprensa brasileira na cobertura da primeira experiência
de clonagem animal realizada no país. Analisa a construção da notícia científica
a partir de aparatos semiológicos, buscando identificar possíveis erros na sintaxe
jornalística das notícias veiculadas sobre o assunto. Trata do manejo de agenda-setting
organizado por assessoria de imprensa em C&T.
 1 - Contextualização
 Um evento inédito no campo da pesquisa
agropecuária brasileira épano-de-fundo para a análise de como se dá a transposição
do fato científico para ouniverso da percepção midiática da notícia jornalística.
O aparecimento da bezerraVitória como símbolo de uma competência científica
e representação do status alcançadopela comunidade científica nacional,
que, com o domínio de uma tecnologia, defronta-secom uma espécie de rito de
passagem para o que se convencionou chamar globalização.
 Num momento em que a competitividade científica
se transforma emexigência à inclusão social, o anúncio sobre a produção do primeiro
clone animalbrasileiro surge na imprensa nacional sob a influência de um discurso
típico daconjuntura neoliberal. A tônica ufanista se repete no noticiário, denunciando
aorquestração do enunciado pautado pelas assessorias oficiais. "Esse sucesso
inicialrepresenta a viabilidade biológica da tecnologia nas nossas condições,
mas por outrolado evidencia a necessidade de intensificação dos estudos objetivando
melhores índicestécnicos", diz a nota técnica divulgada pela Embrapa no
jornal O Globo(21/03).
 2 - A marca"Dolly" e a revolução
biotecnológica
 Daqui há mais algumas dezenas de anos quando
o fenômeno darevolução biotecnológica estiver sendo ensinado nos bancos escolares,
alguns símbolosdessa era serão usados como referência à metodologia que costura
genes. Dolly,certamente, será o mais representativo deles. A força da marca
da ovelha clonada naEscócia, em 1996, pode ser sentida no noticiário que reportou
a experiência da EmpresaBrasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que deu
origem à bezerra Vitória emmarço desse ano. A comparação seria inevitável, mesmo
se tratando de um procedimentodiferente daquele que gerou a ovelha transgênica.
 "Parece que subimos mais um degrau em
direção ao terraço doPrimeiro Mundo, com o clone da bezerra Vitória, realizado
pela Embrapa", escreveFélix Maier, leitor da revista ISTOÉ. A manifestação
de Maier parece serresultado direto do discurso construído pela revista, que
ressalta na edição de 28 demarço o ingresso do Brasil "para o fechado clube
das nações que desenvolvemexperiências com clonagem animal".
 "Quase uma Dolly", diz a revista
Veja na semana em que anotícia estourou. Já no título o semanário avisa que
o Brasil quase chegou lá... Denovo Dolly como modelo de perfeição. A tecnologia
a ser copiada como prova decompetência científica. O discurso carrega traços
inequívocos do difusionismoengendrado nos institutos de pesquisa, principalmente
a partir dos anos 60, que prega ummodelo de desenvolvimento e uma concepção
de modernização como um novo "tipo demudança social no qual novas idéias
são introduzidas em um sistema social tendo emvista produzir um aumento de renda
per capita e dos níveis de vida mediantemétodos de produção mais modernos
e de uma organização social aperfeiçoada"(ROGERS, 1962) . (1)
 3 - Agenda-setting: umespetáculo de
notícia
 O ranço difusionista nos textos jornalísticos
analisadoscertamente tem origem na construção da abordagem sugerida pelas agências
de relaçõespúblicas (2) mobilizadas pela comunidade científica responsável
pelaexperiência. A notícia de Vitória foi produzida a partir de uma bem articulada
campanhade mídia. A imprensa só tomou conhecimento do fato vários dias depois
do acontecido."O anúncio oficial foi feito dia 21, pelo ministro da Agricultura
e doAbastecimento, Marcus Vinícius de Morais", informa o house-organ
da Embrapa (Folhada Embrapa n° 49 - Março de 2001). O caráter sigiloso
da divulgação foi usadocomo mais uma estratégia de marketing para impactar ainda
mais o "valoragregado" quer continha a notícia.
 "Vitória nasceu forte, parto normal.
É uma pisciana". Afrase foi atribuída pela revista ISTOÉ como sendo
do veterinário Evandro SouzaSantos, da equipe da Embrapa, comunicando o sucesso
do parto aos demais mortais que nãopuderam presenciar o milagre científico.
"O orvalho decorou as folhas de capim degotículas que mais parecem pingentes
de cristal e transforma o pasto em uma imensajoalheria", descreve o texto
da assessoria de imprensa da estatal, pintando o quadrodo nascimento de Vitória
com as cores de uma narrativa bastante familiar que fala de umaoutra manjedoura.
 O texto jornalístico da cobertura muitas
vezes perde o foco dedivulgação científica para se transformar, brilhantemente,
numa bem redigida peçapromocional. A vaquinha do presépio é transformada no
próprio "cordeiro" damídia. "Os cientistas atualmente estão trabalhando
numa fantástica linha de novastecnologias que revolucionarão nossos produtos
e processo de produção (...) o desafio,em cada caso, não é apenas técnico, e
sim comercial, ou seja, desenvolver versõeseconômicas e práticas desses produtos".(3)
 A importância comercial do projeto Vitória
suplanta seu interessecientífico. A estratégia de divulgação segue a mesma lógica.
Trata-se de um produto,planejado como tal desde sua concepção primeira. "A
experiência da Embrapa aindanão pode ser transferida para os currais. Apenas
quatros dos 29 novos embriões vingarame foram transplantados para o útero de
vacas da raça simental, boa produtora deleite", analisa Veja (página
121 - 28.03).
 O enfoque espetacular dado à notícia da experiência
científica quegerou Vitória denuncia o processo de descontextualização por que
passa a informaçãocientífica, sob o pretexto dos comunicadores de torná-la mais
inteligível ao públiconão especializado. "Brasileiro que copiou bezerra
não descarta uso da técnica emhumanos", destaca o jornal Folha de São
Paulo (página A12 - 23.03). Em seusubtítulo, o diário paulista apela para
uma das regras básicas de qualquer editor quequeria fisgar a audiência: a utilização
de interesses previsíveis, como a importânciadas conseqüências dos fatos narrados
. (4)
 Segundo Medina (1988), "a mensagem jornalística
como um produtode consumo da indústria cultural desenvolveu uma componente verbal
específica, que servepara chamar a atenção e conquistar o leitor para o produto/matéria".
Os apelosverbais empregados no noticiário avaliado pontuam a posição que os
narradoresescolheram para retratar o fato científico, construindo a informação
jornalística apartir, principalmente, das fontes oficiais.
 No escopo da narrativa produzida pela imprensa
brasileira sobreVitória não se encontra fonte alienígena ao universo gerador
da experiência. É omonopólio da fala, exercido sem constrangimentos pela Embrapa.
Na absoluta maioria dasmatérias veiculadas no dia seguinte ao da divulgação
oficial, as principais fontesouvidas eram do Ministério da Agricultura e do
Abastecimento e da equipe de pesquisa ouda diretoria da Embrapa. Rodolfo Rumpf
(o pai do clone), Alberto Portugal (presidente daestatal) e o ministro Marcus
Vinícius Pratini, praticamente foram os únicos coadjuvantesde Vitória nesse
conto biotecnológico narrado pela mídia impressa nacional.
 4 - Alfabetizaçãocientífica: a mobralização
da imprensa
 A obtenção pelos cientistas do primeiro
clone animal brasileirocertamente é um evento que merece a maior publicização
possível. O papel da imprensa,aliás, para além de manter-se como parte da indústria
cultural, tendo a notícia comoseu insumo primordial, é o de trazer a conhecimento
das mais diversas camadas sociais ainformação mais fiel ao fato científico ocorrido.
Ao passo que a teoria difusionistapreconiza a ação de especialistas convencendo
os consumidores a adotar inovaçõestecnológicas e científicas, uma tendência
cada vez maior entre os comunicólogos é ada função educadora da imprensa no
que tange o suporte à sociedade no entendimentosobre os fatos científicos.
 Para os que vão contra essa proposta, o papel
pedagógico da imprensaé mais uma contradição do jornalismo, que também se pretende
como ciência. SegundoMEDITSH (1992) "Uma pedagogia - teoria do conhecimento
posta em prática - quepretenda não apenas sobreviver à realidade, mas também
intervir para a suatransformação, precisa entender essa realidade e como o conhecimento
se relaciona comela". (5)
 No caso Vitória, os jornalistas se esforçam
para explicar porque abezerra da Embrapa não foi clonada exatamente como a ovelha
do escocês Ian Wilmut. Aspeças giram em torno exatamente de explicar as diferenças
tecnológicas entre o processoutilizado pelos brasileiros e aquele desenvolvido
na geração de Dolly. "Rumpf,porém, aprendeu algumas das técnicas necessárias
com Laurence Smith, ex-aluno de IanWilmut, hoje na Universidade de Montreal
(Canadá)", explica Folha de São Paulo.
 "Para Dolly, segundo o pesquisador,
foram usadas células oriundasdas glândulas mamárias de uma fêmea adulta, enquanto
para Vitória as células são deum embrião de apenas cinco dias coletado de uma
vaca da raça simental pela técnicaclássica de transferência de embriões",
detalha a Gazeta Mercantil (páginaB24 - 22.03).
 No mesmo dia o Correio Brasiliense ocupa
toda sua página 14para mostrar o que havia ocorrido cinco dias atrás na fazenda
Sucupira, onde Vitórianasceu. Um dos apelos narrativos utilizados pelo jornal
é uma arte onde se tenta explicarao leitor, por meio de desenhos, "como
é o processo". "Vitória nasceu pormeio de uma técnica conhecida como
transferência de núcleo", desenha a legenda doCB.
 Longe de todas as circunstâncias e detalhes
relacionados ao complexoprocesso empregado pela biotecnologia que originou Vitória,
os comunicadores se desdobrampara, primeiro compreender, e depois "traduzir"
tudo o que ocorreu noslaboratórios do centro de pesquisa. Segundo BURKET (1986),
"Menos administrável éo risco de se destorcer a notícia de ciência nessa
busca de algo novo para leitores eespectadores. Em alguma parte entre o processo
de seleção de tópicos e o processo deredação, o cientista e o redator divergem".
(6)
 Com a popularização dos serviços de relações
públicas assessoresnos institutos de pesquisa, o processo de "alfabetização
científica" toma suaação inicial junto aos profissionais de jornalismo
que atuam na intermediação entre asfontes científicas e sua clientela jornalista
que escreve sobre ciência nos grandesmeios de comunicação de massa. A prática
do jornalismo científico pela assessoria daEmbrapa, no entanto, parece estar
em desvantagem em relação à chamada"comunicação empresarial", adotada
recentemente pela política decomunicação da estatal.
 Desta forma, a abordagem divulgada pela assessoria
de imprensa estevemenos engajada na incumbência pedagógica que o jornalismo
deveria assumir, que em prolde uma visão mais empresarial do fato científico.
O enfoque na guerra no campo dabiotecnologia entre os países que se arvoram
no desafio da clonagem, procura"ensinar" mais ao leitor sobre a disputa
de novos nichos de mercado no campo dastecnologias avançadas, que sobre cultura
e manejo de genes.
 Quando tenta "educar" o leitor
sobre o assunto, o noticiárioé flagrantemente refém da informação disseminada
pelos pesquisadores, principalmenteatravés das assessorias de divulgação. A
cobertura do aparecimento da bezerra clonadapela Embrapa, sintomaticamente,
se caracteriza pela apuração e sintaxe cartorial danotícia. A mídia deseduca
cientificamente a população quando reproduz um discurso semconfrontá-lo com
a opinião de outras fontes dissociadas do ambiente da experiênciaespecífica
noticiada. Para BURKET, "uma crítica à redação de ciência popularenvolve
acusações de que os redatores ignoram quem merece crédito igual, talvez maior,por
este último avanço (...) Alguns funcionários de RP podem insistir em não dar
osnomes de outros, alegando que não têm porque dar publicidade a trabalho de
fora de suaspróprias instituições. Esse raciocínio espúrio indica uma disposição
por parte doscientistas e do pessoal de RP para permitirem distorção em benefício
pessoal".
 Vitória não era uma experiência inédita.
Cientistas francesesapresentaram no dia 05 de março de 1998, no Salão da Agricultura
de Paris,"Marguerite", uma bezerra clonada a partir de uma célula
de embrião."Nascida no dia 20 de fevereiro, mas já com 48 quilos, Marguerite
foi apresentadasomente em vídeo, já que não se quer correr o risco de que pegue
uma doença na feirade animais de Paris, considerada 'a maior fazenda do mundo',
explicou um de seus 'pais' doInstituto Nacional de Pesquisa Agronômica (INRA).",
informa o Jornal do Commerciode Pernambuco em sua página de Ciência &
Meio Ambiente (06.03.98).
 5 - A notícia comoferramenta de posicionamento
estratégico
 Segundo KOTLER (1988), "a empresa
não deve apenas desenvolver umaestratégia clara de posicionamento, ela deve
também comunicá-la efetivamente". Anotícia científica é só mais uma das
tantas ferramentas da administração demarketing. Porque a ciência e a tecnologia
são peças indispensáveis da estratégiamercadológica. Claramente o jornalismo
científico praticado na divulgação daexperiência que resultou Vitória foi utilizado
como mais uma das peças de promoção,elaboradas dentro de uma visão de comunicação
empresarial.
 Vitória significa o esforço de posicionamento
da Embrapa, numa açãode marketing definida por KOTLER como "estratégia
de clube exclusivo". Aintencionalidade é de imprimir à opinião pública
a posição de componente do seletogrupo de empresas qualificadas para o desenvolvimento
de produtos da revoluçãobiotecnológica. "Com a bezerra 'Vitória', Embrapa
dá um salto na pesquisabiotecnológica para o aprimoramento do rebanho nacional",
destaca o Jornal doBrasil no subtítulo da matéria publicada no dia 22.03,
página 16. No segundoparágrafo o diário carioca reproduz a opinião do ministro
Pratini: "O feito insereo Brasil no rol das nações capazes de efetuar trabalhos
desta envergadura eresponsabilidade científica". Na mesma linha de raciocínio
a Folha de São Pauloaponta no seu editorial do dia 23 (página A2): "(...)
É esse, sem dúvida ocaminho para o país, a exemplo do que ocorreu com a genômica,
consolidar-se como naçãodo Terceiro Mundo com domínio de tecnologia de clonagem".
 A Agência Estado distribuiu e a Folha
do Povo, de MatoGrosso do Sul, por exemplo, reproduziu o seguinte lead:
" O Brasil deu oprimeiro passo no domínio da tecnologia de clonagem animal
(...)". A revista Dinheiropublica a matéria explicando "Como
a Embrapa dominou o know-how de produção decópias". Na reportagem, em tom
espetacular, a revista abre espaço inclusive paraambientar os leitores ao momento
do parto, citando até o estilo da música que a equipecientífica ouvia na hora
do nascimento de Vitória: "Ao som new age dacantora Enya, em três
simples laboratórios de paredes brancas e com um orçamento de R$300 mil, uma
equipe de 20 cientistas brasileiros da Embrapa Recursos Genéticos apresentouna
quarta-feira, 21, uma façanha: Vitória, uma simpática bezerra da raça simental,
decabeça branca e orelhas castanhas, é o primeiro animal clonado no Brasil".
 As técnicas de narrativa jornalística poderiam
ser definidas porteóricos de marketing como canais para efetivação de uma espécie
de"posicionamento psicológico", da marca Vitória/Dolly. "Outros
homens demarketing dão mais ênfase ao posicionamento real, onde eles
examinamdetalhadamente cada aspecto tangível de um novo produto para conquistar
umaposição". (7)
 "Quatro anos depois da criação da ovelha
Dolly, pelo menos duasempresas americanas estão oferecendo serviços de clonagem
para fazendeiros. Apesar demuitos deles ainda não poderem aderir à técnica,
alguns já estocam células de animaisde raça no congelador. Somente como garantia.",
o trecho da matéria de JustinGillis publicada recentemente no Washington
Post não deixa dúvidas que a guerrade mercado já começou. A disputa no ranking
do posicionamento da nova tecnologiaé uma questão também de convencimento.
"Posicionamento é o ato de projetar aoferta da empresa de forma que ela
ocupe um lugar distinto e valorizado nas mentes dosclientes-alvo", define
Philip Kotler.
 6 - Responsabilidadesocial e jornalismo
científico
 A mídia tornou-se hoje o elemento asseverador
por excelência. Umaespécie de espelho tecnológico onde mal refletimos a realidade.
Paródia derepresentação de um discurso elaborado por multi-emissores, mútuos
canais e umarecepção largamente diversificada. A informação que "transmite"
umarealidade, uma experiência, um fato precisa ser, sociologicamente falando,
responsável,no sentido do compromisso com sua provável recepção.
 A responsabilidade de uma prática jornalística
para a divulgaçãopública de C & T carece estar intimamente vinculada a uma
postura ética, tanto dasfontes de informação, quanto dos canais de comunicação,
para cumprir seu papel dealfabetizadora de uma consciência crítica da sociedade
sobre a atividade científica.Tendo como base a metodologia utilizada pela sociologia
da cultura de massa, aresponsabilidade social do jornalismo científico pode
ser medida pelo teorema "quemdiz o que a quem e com que efeito" (LASSWEL,
1948).
 MEDINA diz que "para a maioria dos operadores
de cultura de massa,há dois atos de fé que permeiam sua atividade:
primeiro que eles são, emúltima análise, os desencadeadores de certos efeitos
da sociedade; segundo, quetrabalham em um produto cultural de segunda categoria,
confrontado com outros produtosculturais mais bem conceituados na sociedade,
como uma obra literária, uma tesesociológica, ou um objeto de arte" . (8)
 A leitura do noticiário sobre Vitória deixa
transparecer o esforçodas fontes oficiais e da mídia ("quem") em desencadear
na opinião públicanacional ("a quem") uma sensação de desenvolvimento
tecnológico ("oque"), alcançado por determinado setor da comunidade
científica tupiniquim. Anotícia do surgimento de Vitória é dada no intuito de
legitimar o que os teóricoschamam de "modernização simbólica" (GALBRAITH,
1964). (9) Umprocesso que se alicerça sobre um discurso de modernidade ditado
pela exigêncianeoliberal de um modismo científico desenvolvido para dar suporte
ao poderio concentradonas grandes corporações transnacionais.
 A padronização de um modelo de desenvolvimento
científico etecnológico mundializado é referendado subliminarmente no texto
jornalístico quereporta a experiência da primeira clonagem animal brasileira.
Depois da genômica, atransferência de núcleos é a bola-da-vez da massificação
cultural. Trata-se de umproduto da ciência, e como tal deve ser vendido. Se
a febre aftosa dizima rebanhos mundoafora, ou se o custo-benefício da produção
de leite leva produtores gaúchos, emprotesto, a jogar fora num só dia 300 litros
do produto, não importa. O que importa éque o Brasil já tem sua "Dolly"...
para quê ela vai servir? Bem, essa é umaoutra história.
 7 - Conclusões
 Despreparada para a cobertura competente
de C & T, a mídiabrasileira mostra-se, no caso específico da clonagem da
bezerra Vitória, totalmenterefém das fontes oficiais geradoras da informação
sobre a inovação científicanoticiada. Por sua vez, as agências de relações públicas
ligadas à fonte científicaatuam como meros atravessadores do discurso tecnicista,
reproduzindo, sem critérios, osjargões da sintaxe dos especialistas. O agendamento
da divulgação científica,utilizado como ferramenta de estratégia de marketing,
uniformaliza a distribuição e oacesso à informação, revelando a herança do modelo
de invasão culturalcaracterístico da prática difusionista que ainda marca os
processos de comunicação daEmbrapa.
 A popularização da notícia científica, nesse
caso, obedece acritérios mais próximos ao universo publicitário, inviabilizando,
pela entropia quegera, uma melhor performance dentro do conceito de "alfabetização
científica"a que poderia servir o jornalismo de divulgação científica.
O tratamento deespetacularização por qual passa a notícia sobre a geração de
Vitória, se por umlado faz aumentar a audiência do noticiário, por outra via
torna o importante eventocientífico apenas mais uma peça de entretenimento do
público consumidor de notícias.
 Construída numa analogia, a notícia sobre
Vitória tem seu enredoerguido a partir da representação simbólica que se tornou
a ovelha Dolly. Os redatoresconduziram o enunciado sob o paradigma biotecnológico
da clonagem escocesa, dogmatizandoainda mais a experiência científica, quando
o mais positivo seria aproveitar o eventopara desmistificar o método científico.
 Vitória foi condenada então à representação
de uma paródiatecnológica de Dolly. Mais que um avanço da ciência, foi configurada
dentro de umesquema que ratifica a dependência de conhecimento dos países em
desenvolvimento, ondetoda novidade sempre chega mais tarde. O experimento científico,
assim, desconfigura-sede sua condição deontológica para ser representado na
mídia como uma práxis carregadade uma outra simbologia: o mais moderno
dos signos capitalistas. A mais nova façanhaindustrial.
 O episódio reflete uma evidência preocupante:
a comunicaçãopública de C & T não consegue configurar uma metodologia adequada
de apropriaçãoda informação científica, sendo incapaz de dar à notícia científica
uma estruturasem interferências do discurso econômico e da política, quando
não descamba paramodelos lingüísticos populescos. Fernanda Paraguassu informou
no dia 22 de março, na GazetaMercantil, "O ministro da Agricultura,
Pratini de Moraes anunciou ontem onascimento do primeiro animal clonado do Brasil".
Evidentemente um enunciadocartorial. E nada mais representa melhor o jornalismo
cartorial brasileiro que a GazetaMercantil.
 "Vamos fazer uma pausa nas CPI´s, plataformas,
corrupção,brigalhada e olhar para o Brasil. A Embrapa, que reúne a nata da pesquisa
brasileira.Executou caladinha a clonagem animal (...)", criticou a coluna
de Ari Cunha, no dia23 de março, no Correio Brasiliense . "Tudo
que a Embrapa faz é bem feito, ea prova está na equipe liderada por Rodolfo
Rumpf finalizando com êxito a clonagemanimal", defende o colunista.
 Mauro Zanatta, dia 22 de março, de Brasília
para o jornal Valor, produziuum lead tecnicamente redondo: "Uma
bezerra da raça simental é o primeiroanimal clonado do Brasil. Batizada como
Vitória, a bezerra é resultado de experiênciasbiotecnológicas da Embrapa Recursos
Genéticos".
 Hagamenon brinca com a notícia científica
sobre o surgimento deVitória em sua coluna "Figura da Semana": "Acaba
de nascer a bezerrainteiramente clonada pela Embrapa, líder mundial em genética
de águas profundas. Apesarda oposição da Igreja Católica, que só aceita a clonagem
para fins de reprodução, noBrasil já se pratica este tipo de experimento há
muito tempo". O humorista usaclaramente a notícia científica para deseducar
os leitores, brincado com os conceitos emisturando fatos, épocas e atores da
conjuntura brasileira neoliberal, numa peça pareceque escrita para quadro do
programa Casseta & Planeta: Urgente!, humorísticoda Rede
Globo.
 O fato científico, ao ser anunciadopublicamente,
é apropriado, principalmente no exercício do jornalismo, por váriosestilos.
A seqüência é uma distribuição por canais diferenciados para um público(audiência)
também extremamente distinta. À medida que se afastada da matiz científicatorce
sua sintaxe, construindo um enunciado mais adequado à sua audiência. Avariabilidade
dos estilos discursivos que se apropriaram da informação sobre a clonagemde
Vitória mostra como este tipo de informação pode ser oferecida a públicos deinteresse
generalizado, desde que devidamente ou indevidamente manipulada.
 Notas
BURKETT, Warren. Jornalismo científico: como escrever sobre ciência, medicina
e alta tecnologia para os meios de comunicação. Rio de Janeiro/RJ, Ed. Forense
Universitária, 1990.
DIAZ BORDENAVE, Juan E. Além dos Meios e Mensagens. Petrópolis/RJ,
Ed. Vozes, 1983.
FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação?. Rio de Janeiro, RJ, Ed.
Paz e Terra, 1977.
GUARESCHI, Pedrinho A. In Comunicação & Controle Social. Petrópolis
(RJ): Ed. Vozes, 1991.
KOTLER, Philip. Administração de Marketing: Análise, planejamento, implementação
e controle. São Paulo, Atlas, 1993.
MATTELART, Armand e Michèle. História das teorias da comunicação. São
Paulo, Edições Loyola, 1999.
MEDINA, Cremilda de Araújo. Profissão Jornalista: responsabilidade social.
Rio de Janeiro/RJ, Ed. Forense Universitária, 1982.
MEDINA, Cremilda de Araújo. Notícia, um produto à venda: jornalismo na sociedade
urbana industrial. São Paulo, Summus, 1988.
MEDITSH, Eduardo. O conhecimento do Jornalismo. Florianópolis: Editora
da UFSC, 1992.
ROGERS, E., - Diffusion of Inovations: Free Press, Glencoe, 1962.
SOMAVÍA, Juan. A Estrutura transnacional de poder e a informação internacional.
In: Werthein, Jorge. Meios de Comunicação: Realidade e mito. São
Paulo , Ed. Nacional, 1979.
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*Dalmo Oliveira da Silva é Jornalista, assessor de imprensa de uma unidade de pesquisa da Embrapa.