Ulisses Capozoli*
De que trata o jornalismo científico e qual a importância dessa atividade para
asociedade?
A resposta a estas questões certamente abre
espaço para compreensão e encaminhamentode dificuldades que, sem uma perspectiva
crítica, parecem não ter solução.
O jornalismo científico trata de assuntos
que vão, literalmente, de A a Z oque, neste caso, pode incluir de astronomia
a zoologia. Essa abrangência levanta umasegunda questão: como os jornalistas
podem dar conta desta universalidade? Um astrônomo,metendo-se a zoólogo, por
exemplo, não correria o risco de enfiar os pés pelas mãos?
O tema é interessante e num outro momento
voltaremos a ele. Agora, devemos dizer queeste não é o caso de jornalistas que,
quase sempre, não produzem informaçãoprimária, aquela retirada de forma bruta
da fonte. O que não significa que jornalismointerpretativo (procedimento indispensável
para o bom jornalismo, particularmente ojornalismo científico) não produza informação
primária neste caso, ainteligente, criativa e responsável interpretação
dos fatos para que a sociedade sealimente dela e adote as melhores decisões
para assegurar o que Galbraith chama comsonoridade de "bem estar social".
É exatamente este o caso envolvendo a quebra
de patentes para medicamentos destinadosao tratamento da Aids. Toda a imprensa
publicou, na semana de 4 a 11 de março, adeflagração pela indústria farmacêutica,
na África do Sul, de um processo jurídicode grandes proporções destinado a intimidar
o governo daquele país a não importarmedicamentos genéricos produzidos pelo
Brasil e pela Índia para o tratamento da Aids.
A iniciativa de mais de 40 gigantes farmacêuticos,
entre elas a GlaxoSmithKline, amaior do mundo (Folha de S.Paulo, 6/3/2001,
pág. A9) pressiona para que o governosul-africano recue e invalide uma lei de
1997, criada durante o governo Nelson Mandela, eque autoriza a importação ou
produção de genéricos. Detalhe: a África do Sul tem amaior população com o vírus
do HIV em todo o mundo (4,2 milhões de pessoas).
O protesto feito por milhares de manifestantes
em frente ao Tribunal Superior dePretória na segunda-feira (5/3) e a frase que
repetiram aos gritos e à exaustão "Vidas acima de lucros"
é a demonstração mais clara da arrogância,desumanidade e irresponsabilidade
dos conglomerados farmacêuticos dispostos a trocarvidas humanas por lucros.
A imprensa noticia, mas não interpreta acontecimentos
como este. Por quê? Umaresposta sintética poderia ser: mediocridade. Mas isso
pode, erroneamente, levar a crerque não existam jornalistas talentosos, inteligentes
e angustiados com problemas comoesses dentro das redações. Assim, é preciso
acrescentar que a mediocridade resulta dapostura ideológica adotada por empresários
de comunicação, de completa submissão aosprincípios do neoliberalismo e que
podem ser traduzidos, estes sim, numa única palavra:lucro.
Desastres sociais
Existem muitas maneiras de manipular a
informação. Uma delas é tirar o destaque doassunto, dar num canto, num pé de
página, ou, no caso dos telejornais, reduzir o tempo auns poucos segundos. É
uma forma cínica de se proceder e que, no Brasil, os interessesimediatistas
e sumários do neoliberalismo levam às alturas.
Há uma contradição elementar em agir dessa
maneira. Como é possível, em paísescom o perfil social do Brasil, elevar os
lucros às nuvens sem provocar um empobrecimentoainda maior da sociedade e levar,
à exclusão completa, os que já vivem na zona sombriaentre pobreza e miséria?
A iniciativa arrogante e irresponsável da
indústria farmacêutica na África do Sul,com a intenção de inibir quebra de patentes
também no Brasil, traz de volta debatesfamosos do pós-guerra, quando corpos
vaporizados pelas bombas atômicas lançadas sobreHiroshima e Nagasaki levaram
cientistas como Albert Einstein e Bertrand Russell a seperguntarem: para que
serve a ciência?
A ciência, afirmaram esses homens com a
convicção de que defendiam a humanidade, éum patrimônio da humanidade e sua
função é diminuir o sofrimento humano comodisse Freud a respeito da psicanálise.
Hoje poderíamos acrescentar: e para que
serve o jornalismo científico?
O jornalismo científico deve contribuir
para uma alfabetização crescente dasociedade para que ela tome consciência de
que abusos desse tipo, cometidos em nome de umpretenso conhecimento exclusivo,
levam a desastres sociais que podem e devem ser evitados.Caso contrário, a arbitrariedade,
arrogância e ganância não terão limites. Em termossociais, o princípio da ação/reação
mostra que a conseqüência direta dessasatitudes é o crescimento da violência.
E, aí, não basta construir presídios.
Educação ambiental
Tão perturbador quanto a negação de medicamentos
para Aids a preços aceitáveis, oque a indústria farmacêutica se recusa a aceitar,
mesmo em países pobres, é o problemada água. Essas são duas fontes de garantia
da vida.
Na edição de domingo (4/3) o Jornal do
Brasil dedicou três páginas à água,uma delas uma entrevista com Lester Brown,
diretor do The Worldwatch Institute. Brown éum pesquisador e divulgador de problemas
ambientais em todo o mundo e, por sua posturahumanista e responsável, certamente
condenaria o processo de Pretória.
Depois de recuar para a Idade Média, ao
justificar acidentes provocados por puranegligência e irresponsabilidade no
Rio de Janeiro, como resultado de conjunçõesastrológicas, é bom ver o velho
JB voltar a um tema fundamental à vida. Essadeve ser uma obrigação comum,
o sentido da imprensa. Mas, hoje, quando alguém cumpresuas obrigações, temos
razões para comemorações e esperança.
A edição de Veja (28/2/2001) também
tratou de água na matéria "A lentaagonia de um símbolo brasileiro",
o rio São Francisco. Em duas página e meia, arepórter Gisela Sekeff escreveu
um impressionante relato desse rio chamado "daintegração nacional".
Em muitos pontos, o leito assoreado do "Chicão"já não permite a navegação.
Espécies animais e vegetais desapareceram de suas águasou deixaram as lagoas
que secaram às suas margens.
Refugos venenosos de mineração e garimpo,
esgoto urbano e erosão de terras ocupadaspor uma agricultura apressada estão
entre os destruidores do rio. Sem contar aintrodução de espécies estranhas à
sua fauna caso dos predadores tucunarés,que predominam nas represas de
hidrelétricas, pontos em que o fluxo do rio éestrangulado para gerar energia.
Em agosto, informa Veja, começa o
projeto de transposição das águas do SãoFrancisco para irrigar o sertão de Pernambuco,
Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte.Serão 1.440 quilômetros de canais e tubulações
cortando terras estorricadas. Seiniciativas parecidas não tivessem resultado
em completo desastre, seria o caso deapostar no otimismo. As secas do Nordeste,
no entanto, são tragédias mais políticas doque ambientais.
Com propósitos louváveis à primeira vista,
as águas de dois rios (Amu Daria e SyrDaria) que abasteciam o Mar de Aral, na
antiga União Soviética, tiveram suas águasdesviadas, nos anos 60. A intenção
era dotar o país de autosuficiência em algodão. Oalgodão cresceu, mutiplicou-se,
abasteceu o país e deixou sobras para a exportação.Mas o que parecia um benção
acabou como praga bíblica. O Mar de Aral está secando,espalhando doenças respiratórias
e câncer por toda sua antiga margem que, em algunscasos, recuou em mais de 30
quilômetros e continua encolhendo.
No deserto, que já foi o antigo leito do
mar, navios pesqueiros apodrecem calcinadospelo Sol e corroídos por tempestades
de areia. A atividade pesqueira foi encerrada e odesemprego e a fome espalham-se
pela região.
Problemas bastante complicados também manifestaram-se
na foz do rio Colorado, no Golfoda Califórnia. No passado, uma região de rica
biodiversidade, o estuário do Colorado,rio que esculpiu o Grand Canyon e teve
parte de suas águas desviadas para a agricultura,é atualmente uma fonte crescente
de dificuldades ambientais.
Às vésperas de se fazer, no Brasil, um empreendimento
como o desvio de águas do SãoFrancisco, qual a postura da imprensa quanto aos
seus inevitáveis desdobramentos,incluindo os positivos?
A destruição do Mar de Aral foi considerada
o maior desastre ambiental do século 20.Já o efeito-estufa, provocado especialmente
pelo gás carbônico, resultado dadestruição de florestas e atividade industrial
sem cuidados ambientais, pode ser a maiorcatástrofe já produzida pela humanidade.
O terceiro relatório do Comitê Intergovernamental
de Mudanças Climáticas, aprovadoem Xangai em meados de fevereiro e divulgado
por toda a mídia, considera existir"novas e fortes evidências de que a
maior parte do aquecimento do Planeta, ao longodos últimos 50 anos resulta de
atividades antrópicas".
Aí voltamos ao ponto de partida. A imprensa
publica, mas sem a interpretação edidatismo que o assunto exige. Educação ambiental
é uma necessidade inadiável que aimprensa deve entender como uma prestação de
serviço. Para isso é fundamental que osprincipais jornais brasileiros disponham
de suplementos científicos. Por que imitamos, emdetalhes, o modelo do jornalismo
norte-americano e, no caso dos suplementos científicos,fechamos os olhos? Por
despreparo e analfabetismo científico de diretores de redação edonos de jornais.
O problema é que o custo dessa ignorância
tende a ser elevado e, mais uma vez,distribuído especialmente entre os mais
desfavorecidos. É essa gente que mora emencostas perigosas, fundos de vales
e áreas alagadiças, fadados a ser especialmentefustigadas por tempestades previstas
nas mudanças ambientais. Pode parecer catastrofismo,mas é o que prevêem as simulações
físico-matemáticas. No fundo, todos pagam. Unsmais que outros.
Assunto complexo
A Folha de S.Paulo (2/3/2001, pág
A11) trouxe, com o destaque que merece,investigações de que William Shakespeare
teria sido um consumidor metódico de cannabis,a conhecida maconha. O
Correio Braziliense deu em pé de página, o Jornal doBrasil numa
pequena nota. O Estado de S.Paulo nem tocou no assunto.
A pesquisa é um assunto científico, resultado
do trabalho de dois pesquisadores sulafricanos (Frances Thackery e Nick van
der Merwe). Tanto é que foi publicada pelo SouthAfrican Journal of Science.
Defensores de uma pretensa moralidade ferida
condenaram o estudo. Stanley Wells, doSheakespeare Birthplace Trust, segundo
a Folha, argumenta que dos 8 milhões depessoas que consomem cannabis
na Inglaterra nenhuma escreve como Shakespeare.
Por que deveriam, caro senhor?
Shakespeare foi um gênio da literatura e
se recorreu, realmente, à cannabis,certamente foi para dar liberdade
à criatividade que tinha e não para procurá-la emoutro lugar. Não distinguir
essa situação é não justificar a classificaçãoprofissional de "intelectual",
alguém que deve pensar, fazer funcionar ointelecto, antes de abrir a boca.
O assunto "drogas", complexo e
com profundas raízes em desajustes sociaiscomo o desemprego (entre muitos outros),
apesar de andar literalmente pelas ruas ainda étabu para boa da imprensa. Neste
caso, a única abordagem aceita é a policial.
É claro que a cannabis produz efeitos
psicológicos e, senão em todos, pelomenos em parte dos casos leva a uma dependência,
ainda que mais leve do que a das drogaspesadas como a cocaína, a heroína ou
o crack. Se não produzisse efeitos, a cannabisnão seria consumida.
Em partes da Europa, nos Estados Unidos
e no Brasil foi cultivada e consumida (donaCarlota Joaquina, a fogosa esposa
de D. João VI que o diga) até a Segunda Guerra Mundialsem maiores estardalhaços.
Acabou abolida por pressão norte-americana, resultado de umadisputa interna
pelo controle da Lei Seca que vigorara antes disso, e da ascensão socialde classes
baixas, nos EUA, depois da crise dos anos 20.
Plantas mágicas, alucinógenas ou qualquer
nome que tenham são um assunto maiscomplexo que permite ver a interpretação
policial.
Richard Evans Schultes, diretor do jardim
botânico da Universidade de Harvard e AlbertHofmann, químico e sintetizador
do LSD, escreveram um livro belíssimo, com acomplexidade que o assunto requer:
Plants os the Gods: origins of hallucinogenic use.Num certo momento,
mostram que a estrutura química de plantas alucinógenas imitaa estrutura
química de substâncias produzidas pelo cérebro, as endorfinas. Issosignifica
que eles podem atuar como uma gazua, uma chave falsa, capaz de abrir a fechaduradas
células nervosas.
Pura coincidência? Difícil acreditar que
essa seja a melhor resposta.
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OBS: Artigo publicado originalmente no site do Observatório da Imprensa, do Labjor/Unicamp.
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*Ulisses Capozoli é Jornalista especializado em divulgação científica, historiador da ciência e presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC).