Wilson da Costa Bueno*
A corrida pela leitura
do " livro da vida", o " arrendamento"
da nossa base de lançamento de foguetes para os EUA,
o lobby de laboratórios internacionais para a liberação
de novas drogas e os interesses em disputa no universo dos
transgênicos escancaram a relação, cada
vez mais perigosa, entre a produção de C &
T e o jogo (nem sempre limpo) da política e do mercado.
Talvez seja essa a discussão
mais premente a se empreender no Jornalismo Científico,
tendo em vista o fato de que essa relação
compromete definitivamente a independência e a qualidade
da informação em ciência e tecnologia.
A mídia, mais
antenada com a busca de audiência e a transformação
da notícia em espetáculo, na maioria das vezes,
faz a sua parte neste jogo, postando-se invariavelmente
ao lado dos que postulam o atrelamento da ciência
e da tecnologia ao mundo do capital (que, por sua vez, define
e constrange o mundo da política).
Com raras exceções,
a cobertura de ciência e tecnologia, realizada pelos
meios de comunicação, está à
mercê de fatos espetaculares e vive em função
de espasmos, pecando pela irregularidade e pela falta de
especialização. Por isso, é tão
difícil identificar profissionais de imprensa que
trabalham exclusivamente neste campo, ainda que , felizmente,
os que aí se postam sejam, em geral, lúcidos
e competentes. Relegada a segundo plano (entregue a jornalistas
sem experiência ou especialização),
a cobertura de C & T acaba sendo fragmentada, não
contextualizando as notícias e, sobretudo, alimentando,
ingenuamente, a sanha dos que se apropriam do conhecimento
científico visando unicamente auferir lucros (que
podem ser espantosos, por exemplo no caso do Projeto Genoma
Humano. Ou não é essa a única ambição
da Celera?).
Basta consultar os jornais,
as revistas e a televisão brasileira para identificar
medicamentos que prometem, a cada dia, curas milagrosas,
" terapias alternativas" e seus gurus (dá
para esquecer do " presepeiro" com " duas
centenas de doutorados" que compareceu por duas vezes
ao programa do Jô Soares e teve destaque na Isto É?)
ou proclamam a superioridade do produto estrangeiro.
As empresas transnacionais,
as universidades estrangeiras e os Governos dos países
hegemônicos dispõem de uma estrutura formidável
de comunicação e dela se valem, com eficiência,
para gerar pautas na mídia, legitimadas por publicações
de prestígio, nem sempre isentas. O argumento, até
há pouco tempo tomado como verdade, de que a informação
é válida e relevante porque foi publidada
numa grande revista (científica ou de divulgação
científica) internacional, caiu recentemente por
terra, desde que a relação espúria
entre essas publicações e os departamentos
de relações públicas de grandes organizações
foi tornada pública.
O cerco à informação
científica independente e crítica está,
portanto, se fechando, graças a esse esforço
global de estabelecer, a qualquer custo, o sigilo e controle
da informação científica, visando proteger
os interesses e os ganhos de parceiros privados, cada vez
mais recrutados para o financiamento de grandes projetos
de C & T.
Evidentemente, o processo
é irreversível, na medida em que é
necessário reunir capital para bancar pesquisas onerosas,
na maioria dos casos, de alto risco em termos do retorno
do investimento realizado. Soa, portanto, quixotesco e ultrapassado,
defender, nos dias de hoje, o rompimento da relação
entre o público e o privado na produção
de ciência e tecnologia. Mas devem existir limites
a serem definidos, balizados sempre pelo interesse público.
A pressão norte-americana
para destruir o esforço brasileiro bem sucedido no
combate à Aids somente para privilegiar a poderosa
indústria farmacêutica é um exemplo
deste constrangimento que vai contra a sociedade. O boicote
à carne brasileira, sob o pretexto da contaminação
pela " vaca louca" é outra aberração,
devidamente rechaçada pelo Governo e pela opinião
pública brasileira, que aproxima a ciência
(afinal a doença existe e é um problema contemporâneo
grave de segurança alimentar), o capital (o interesse
da Bombardier) e a política (por isso, a reação
natural da diplomacia brasileira à investida da burocracia
canadense). O que dizer, então, da indústria
tabagista que financia cientistas para, com pesquisas suspeitíssimas,
atenuar as críticas à ação devastadora
do fumo.
O Jornalismo Científico
vive, pois, esse inferno astral. Talvez, em nenhum outro
tempo, a informação de ciência e tecnologia
tenha estado tão acuada quanto agora. As novas tecnologias,
que, ao mesmo tempo, ampliam a possibilidade de disseminação
do conhecimento, têm se mostrado, também, úteis
para o controle da informação e sistemas não
transparentes (embora já denunciados) como o Echelon
estão por aí, espiando o que segue pela rede
mundial e pelo fantástico mundo da comunicação
digital.
O papel da Universidade
deve ser, neste momento, tanto de capacitar futuros jornalistas
para a cobertura da ciência, como de estimular o debate
sobre os compromissos da produção de ciência
e tecnologia. Apoiada na história, na filosofia e
na sociologia da ciência, deve priorizar a visâo
crítica da produção científica,
estabelecendo como parâmetros o interesse da coletividade,
a ética e a democratização do conhecimento
científico.
Em função
das ameaças concretas à isenção
da informação científica, é
fundamental rever o modelo que tem vigorado para a formação
de futuros jornalistas para o trabalho na cobertura de ciência
e tecnologia. Continua sendo importante (e isto não
vale apenas para a ciência e a tecnologia) dispor
de boas fontes, conhecer o assunto de que se fala, mas o
jornalista precisa também (e deve, para isso, ser
conscientizado pela universidade) desconfiar de quem entrevista
e daquilo que lê para fundamentar as suas matérias.
Boas fontes nâo significam fontes insuspeitas e instituições
estabelecidas nem sempre são independentes. (Seria
razoável imaginar que a CTNBio fosse fonte única
para uma reportagem sobre transgênicos no Brasil?)
A maioria das escolas
de Jornalismo não inclui uma disciplina ou prática
voltada para a produção de matérias
de C & T e, se o fizerem, devem cuidar para que esteja
disciplina ou prática esteja sob a responsabilidade
de professores que tenham esta visão crítica
da relação entre ciência e poder. Formar
jornalistas com uma visão romântica da ciência
e da tecnologia (apoiada no pressuposto de que a ciência
e a tecnologia estão a serviço do bem comum)
talvez seja, neste momento crítico, mais pernicioso
do que continuar ignorando as peculiaridades deste segmento
da cobertura jornalística. O que contribui para o
incremento da massa crítica em Jornalismo Científico
é a formação responsável, a
priorização da qualidade naformação
do profissional de imprensa.
A ABJC – Associação
Brasileira de Jornalismo Científico, que acaba de
empossar a sua nova diretoria, constituída, basicamente,
por jornalistas que militam na área, pode contribuir
para este debate, aproximando-se da comunidade científica
e, sobretudo, denunciando os desvios desta cobertura comprometida.
Cabe a ela, juntamente
com as universidades que se disponham a este exercício
saudável, propor conteúdos e práticas
que viabilizem a formação de um jornalista
científico crítico, multiplicando as experiências
bem sucedidas e ampliando o debate para que inclua não
apenas os grandes centros , mas envolva os Estados e cidades
onde o ensino de jornalismo é mais frágil.
O aprofundamento do
sigilo e do controle da informação científica
precisa ser combatido com a colaboração dos
cientistas e das entidades que os representam. Na verdade,
é preciso reconhecer que a denúncia dos prejuízos
do sigilo e do controle tem partido quase sempre dos cientistas,
com raríssimas intervenções dos colegas
das redações.
O profissional de imprensa
vive da livre circulação das informações
e deve defender, com unhas e dentes, o seu acesso a elas.
A ciência e a tecnologia moldam o mundo moderno, interferindo
drastica e planetariamente na vida dos cidadãos,
e, portanto, o seu processo de produção (os
seus compromissos, os seus efeitos na sociedade) precisa
ser acompanhado de perto.
A ABJC tem ainda mais
um papel: alinhar-se com jornalistas e cientistas empenhados
na luta contra o avanço da pseudociência, buscando
formas de conscientizar jornalistas, empresários
de comunicação e o próprio Governo
que a proliferação destas informações
podem trazer sérios danos aos cidadãos, atraídos
por notícias (e, particularmente, produtos) que prometem
milagres. Mais do que isso, a pseudociência ocupa
o espaço e o tempo (que já são escassos
na mídia) que deveriam ser dedicados à informação
qualificada em ciência e tecnologia.
A missão dos
que trabalham em Jornalismo Científico é,
pois, grandiosa e só será completada através
da conjugação de esforços, da vigília
incessante, da humildade (infelizmente nem sempre uma virtude
de jornalistas e cientistas) e da competência profissional.
Dada a pressão
dos que afiam as garras para se subjugar de vez a informação
científica, o tempo urge. Se nada for feito a curto
prazo, talvez tenhamos, jornalistas científicos,
cientistas e pessoas comprometidas com a ciência e
a tecnologia responsáveis, que engolir a seco o refrão
que já vem crescendo: " no jornalismo científico,
tá tudo dominado".
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* Wilson da Costa Bueno é jornalista, professor
do programa de Pós-Graduação em Comunicação
Social da UMESP e de Jornalismo da ECA/USP, diretor da Comtexto
Comunicação e Pesquisa.