Ciência e Religião


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Imprensa, evolução e charlatanismo fundamentalista

Wilson da Costa Bueno*

      A imprensa e os coleguinhas que se cuidem. Ao que parece, os criacionistas e os cientólogos estão doidinhos para avançar sobre nós, com suas teorias estapafúrdias e baboseiras extraterrestres, travestidas de ciência. Como sempre, a mídia, ingenuamente vulnerável às investidas das pseudociências, é o foco preferido, assim como pessoas desavisadas, fragilizadas, pouco esclarecidas ou que acreditam em qualquer coisa que vêem pela frente, especialmente em pessoas famosas,  com fala adocicada e idéias absurdas.
      O mundo moderno é mesmo repleto de contradições e, por isso, é possível conviver com o progresso técnico e crendices que se espalham como fumaça ao sabor do vento, uma perspectiva fundamentalista que tem ganhado corpo na terra do Tio Sam (as maiores maluquices também surgem nos países mais desenvolvidos, que assassinam presidentes, promovem chacinas em colégios, invadem países a torto e a direito e não acreditam na verdade incontestável do efeito dramático do efeito estufa) e que já está plantando raízes em "terra brasilis".
      Ao que parece, o sesquicentenário da Teoria da Evolução (os criacionistas e cientólogos são adversários contumazes do velho Darwin e têm horror a macacos e dinossauros) não foi suficiente para desestimular aqueles que pregam a síntese entre a ciência e a religião e que, como outros credos bobocas (mas lucrativos) que sustentamos por aqui, prometem felicidade, evidentemente apenas disponível para quem tem acesso aos seus estudos e práticas, disponíveis nos produtos que vendem (livros, DVDs etc) ou mesmo nos cursos que seus mentores ministram em sedes luxuosas (nos EUA, pode-se pagar, segundo reportagem de 2008 do Estadão, até 400 mil dólares em um curso de cientologia ministrado durante um luxuoso cruzeiro).
      As pessoas têm dificuldade (e os colegas que trabalham com a divulgação científica já perceberam esse fato há algum tempo) para afastar de vez a explicação sobrenatural para fenômenos terrenos e, com isso, se entregam, sem espírito crítico, a toda forma de charlatanismo, que grassa na mídia em todo o mundo, alimentado por gurus de plantão, com ou sem turbante, mas com uma lábia de dar inveja.
      A Cientologia abriga celebridades, como os atores Tom Cruise e John Travolta e, conforme informa reportagem do Estadão, cativou por aqui a escritora que conversava com duendes e de anjos (você se lembra dela?) Monica Buonfiglio, que chegou a ser capa da Veja e andava agora meio sumida. Mas os anjos e duendes, convenhamos, eram mais divertidos, simpáticos e pelo menos têm servido até hoje para enfeitar os nossos jardins!
      Certamente, a ciência tem lacunas e, quando assumimos que ela é perfeita ou infalível, na verdade estamos atentando contra o seu próprio "ethos". Mas a fé não admite, nos casos dos criacionistas e cientólogos, qualquer contestação e, diferentemente da ciência, promete levar os rebeldes, os não crentes para o fogo do inferno.
      O criacionismo tem várias versões ou leituras e a mais ardilosa é aquela que defende a teoria do "design inteligente" (apoiada na tese de que Deus é o grande projetista do universo), uma tentativa desesperada de emprestar rigor científico a uma explicação sobrenatural. Na verdade, há quem defenda, para reforçar esta tese, a separação entre a teoria do "design" do criacionismo tradicional ( o "design" seria um versão mais refinada), mas no fundo há neles uma raiz comum: rejeitar a explicação científica, muitas vezes valendo-se de suas lacunas, quase sempre temporárias e desfeitas ao longo do tempo.
      Os criacionistas e "designers" gostam de debates acalorados porque, como lhes faltam argumentos e provas para sustentar suas teorias extravagantes, confiam na sua retórica, no seu palavreado sem sentido, nas suas pesquisas sem métodos e dados empíricos confiáveis. Dar atenção a eles e disputar no seu terreno - o bate-boca que beira a fanatismo- é fazer o jogo da fé cega, da falta de bom senso e da "visionice" sem sentido. Não me convidem para este embate porque não tenho mesmo  tempo a perder.
      Os jornalistas sérios ,os que estão comprometidos com a divulgação científica e confiam na competência do método científico, não devem se deixar seduzir por pessoas espertas ("muy amigas") e sem qualquer compromisso com a realidade que aí está.
      Isso não significa que não se deva prestar atenção às religiões e seus impactos na sociedade, particularmente numa cultura como a nossa, absolutamente contaminada por um sincretismo religioso, que une credos aparentemente antagônicos (catolicismo, umbanda, espiritismo etc) . Também não significa que não se deva estudá-las ou não ter respeito pelos que encontram nelas conforto para um mundo efetivamente complexo e injusto.
      O que devemos repudiar são aqueles que, em nome de teorias esotéricas, sem sentido, manipulam a mente dos cidadãos, enriquecendo-se à custa da boa fé de pessoas simples e honestas, e que costumam investir contra os que ousam denunciar sua postura charlatã, inclusive e principalmente os jornalistas investigativos.
      Continuemos confiando nos pesquisadores responsáveis, nos que buscam trilhar o caminho venturoso e promissor da ciência e da tecnologia, e, sobretudo, comprometidos com o interesse público  (você sabia que há também "cientistas" e "pesquisadores" do mal?).
      Talvez os cientólogos e criacionistas tivessem mais sucesso se, em vez de negarem as teorias científicas indiscutíveis, se concentrassem em denunciar o uso indevido da ciência e suas aplicações, identificando as corporações e governos que pesquisam e inovam apenas para aumentar os seus lucros, mancomunados estreitamente com interesses privados espúrios. Se fossem tão inteligentes como o seu "designer", perceberiam que não são os cientistas (Einstein, Darwin, Galileu etc) que merecem as suas críticas ou suspeitas, mas os diretores de P & D e marketing de empresas poderosas, que planejam, promovem e comercializam produtos perigosos (armas químicas e nucleares, agrotóxicos, tabaco, um número considerável de medicamentos nocivos e sem eficácia, drogas etc). Se conseguissem enxergar a realidade, estariam há muito tempo afastados de governantes corruptos e de oportunistas de todos os naipes.
      Num Estado laico por convicção, a sociedade esclarecida não pode assistir inerte ao avanço dos que usam esta fé travestida de ciência para nublar a consciência e a razão, não pode permitir que façam vicejar idéias malucas na mente das nossas crianças e que freqüentem livremente, com uniformes de gala, as nossas escolas.
      O criacionismo e a cientologia são patologias da modernidade. A informação qualificada é a vacina que se deve prescrever para combatê-las.
      Jornalistas e veículos estejam atentos. Não vamos embarcar em mais esta baboseira importada. Ela só faz sentido em sociedades doentes e que aboliu a razão.

Em tempo: Cumprimentos ao Rodrigo Brancatelli pela reportagem sobre Cientologia publicada no Estadão (22/06/2008) e à  Roberta Jansen pela matéria sobre o fundamentalismo religioso contra a teoria da evolução em O Globo (01/07/2008). Se a gente estiver com a mente acesa, os picaretas das trevas não nos pegarão de surpresa. É isso aí, garotinho!

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*Wilson da Costa Bueno é jornalista, professor do programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UMESP e de Jornalismo da ECA/USP, diretor da Comtexto Comunicação e Pesquisa.

 
 
 
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